Correio mediúnico

Espírito: Irmão X

Identificação do Espírito


— Corria o ano de 1581, quando um caso estranho ocorreu em Sevilha — contou-nos o Espírito do Padre Diego Ortigosa, em agradável tertúlia fraternal.

— Desencarnara um médico atencioso e amigo dos pobres, D. Juarez Costanera y Salcedo — continuou ele com a graça do narrador inteligente —, quando, alguns meses mais tarde, apareceu uma jovem que se dizia assistida pela alma do esculápio, ensinando medicação à pobreza desamparada. Encheu-se-lhe a casa humilde e tosca de famintos da saúde e o médico desencarnado atendia, de boa vontade, orientando o tratamento de criaturas enfermas e infelizes. A donzela, convertida em intermediária, não mais encontrou tempo para cuidar de si mesma. As horas disponíveis eram escassas para atender a pessoas doentes e abatidas de sua cidade e vizinhanças. Pouco a pouco, o fenômeno tornava-se conhecido a distância e grande número de peregrinos lhe batiam à porta. Vinham de longe e queriam possuir, de novo, a saúde, a paz, a esperança.

Corria o interessante trabalho, regularmente, mas os familiares de Costanera y Salcedo não viram com bons olhos a movimentação popular, em torno da memória do seu chefe desencarnado.

A jovem Cecília Anteguera, que servia de médium entre o morto prestativo e as criaturas angustiadas, tinha vida simples, atendendo às necessidades dos outros e aos seus próprios deveres em família, mas foi denunciada à Inquisição como feiticeira.

Não tardou o encarceramento. A acusada invocou os princípios de caridade a que servia, recorreu ao nome de Deus, amigos dedicados intercederam por ela, junto aos algozes, mas a pobrezinha foi retida, incomunicável, para longas inquirições.

A par dos beneficiários agradecidos que pediam a sua absolvição, surgiram senhoras fanatizadas e cavalheiros inconscientes que afirmavam tê-la visto entregando-se a noturnos sortilégios, na via pública, ou explorando a boa-fé alheia, como ladra vulgar terminando as acusações gratuitas com o pedido de condenação formal e imediata.  Alguns chegavam a rogar-lhe fosse dada a bênção da fogueira ou a graça de ser esquartejada viva, no auto-de-fé, em nome da caridade da Igreja.

E não valeram os bons ofícios dos protetores prestigiosos.

O padre Gaspar Alfonso Costanera y Salcedo, primo do morto, estava interessado na perseguição e, por isso, fez o possível por guardar a jovem na cela imunda. Prometia uma verificação pessoal. Queria certificar-se. Muitos santos da Igreja haviam visto e ouvido as almas dos mortos. E acrescentava, pedante, que esses fatos eram conhecidos desde os patriarcas hebreus, não obstante a proibição de Moisés, que se manifestara contrário ao intercâmbio com os mortos. Entretanto, a seu ver, aquela mulher seria uma bruxa mentirosa e repugnante. Seu primo D. Juarez estava no Céu, gozando a companhia dos anjos e não voltaria a confabular com mortais desprezíveis. Para isso recebera missas a rodo e solenes exéquias. Que motivo, perguntava ele, levaria um médico a apaixonar-se pelos doentes, além do túmulo? Os Santos e Santas tinham visto almas glorificadas, em beatitude celeste, mas aquela endemoninhada tinha o topete de afirmar que o seu ilustre parente continuava a interessar-se pela medicina, depois da morte.

Não seria loucura? interrogavam os amigos da acusada. E, se fosse, não seria justo desculpar a demente? O padre loquaz, porém, deblaterava, irritadiço, e insistia pela prova final.

Com efeito, após longos dias de expectativa, Cecília Anteguera, abatida e enferma, trazendo nos punhos e braços os sinais de terríveis flagelações, foi trazida a uma sala vastíssima, onde se reuniam alguns juízes eclesiásticos, sob a presidência do Inquisidor-mor.

A pobre medianeira, sob olhares sarcásticos, rogou, em silêncio, a Deus a visita do médico desencarnado. Não seria razoável que o Espírito desse prova de sua sobrevivência? Ficaria desamparada perante os verdugos?

Eis que D. Juarez, o morto, se aproxima. Transfigura-se a médium.

Observando-lhe a palidez e as alterações fisionômicas, o padre Gaspar atende a um sinal do Inquisidor-mor e pergunta, contendo a emoção:

— Estamos em presença do demônio?

A entidade sorriu, utilizando os lábios de Cecília, e respondeu:

— Estais em presença do Espírito.

— Como se chama? — indagou o clérigo.

— Não tenho nome — replicou o desencarnado —, o Espírito é universal.

E continuou o diálogo:

— Confessa que já morreu?

— Sim, já perdi o corpo físico.

— Tem uma pátria?

— Tenho.

— Qual?

— O mundo inteiro.

— Deixou alguma família na Terra?

— Deixei.

— Como se chama essa família?

Antes da resposta, os inquisidores denotavam grande aflição, mas D. Juarez respondeu sem hesitar:

— Chama-se Humanidade.

— Vem do inferno ou do purgatório?

— Não é de vossa conta.

— Tem recomendações a fazer a pessoas do mundo carnal?

— Não devo lembrar o que me compete esquecer para o bem comum.

— Reconhece a autoridade da Igreja?

— Reconheço a eterna autoridade de Jesus-Cristo.

— Oh! Oh!… — exclamaram os circunstantes.

— Finalmente, qual a sua profissão de fé, o seu propósito? — perguntou o padre Gaspar, exasperado.

D. Juarez, o morto, respondeu sem titubear:

— Amar a Deus sobre todas as coisas e o próximo como a mim mesmo, cultivar a verdade, fazer o bem e colaborar na fraternidade universal.

Nesse instante, levantaram-se todos, sob grande revolta. O Inquisidor-mor recomendou o recolhimento da endemoninhada, até ulterior deliberação, explicando-se aos sevilhanos que coisa alguma ficara esclarecida e que o assunto não passava de farsa condenável e odiosa.

O narrador fez uma pausa mais longa, mas um dos amigos presentes, interpretando o nosso interesse, indagou:

— E a médium? Que lhe aconteceu?

— Vocês ainda perguntam? — disse o padre Ortigosa, em tom significativo — como a Inquisição não podia punir o Espírito, queimou a intermediária, em soleníssimo auto-de-fé.

Em seguida, sorriu bondosamente e concluiu:

— Cecília de Anteguera, porém, logo após entregar o corpo às cinzas, uniu-se ao Espírito de D. Juarez, em serviço muito mais elevado e profícuo às criaturas humanas, encontrando no sacrifício a sua melhor realização, convertendo-se ainda em devotada amiga de todos os seus acusadores e verdugos, aos quais sempre recebeu, caridosamente, nos primeiros degraus da passagem sombria do túmulo.


Do livro Lázaro redivivo, obra psicografada pelo médium Francisco Cândido Xavier.


 

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita