Correio mediúnico

Espírito: Hilário Silva

O funcionário condenado


I

Envergonhava-se. Tivera funerais pomposos. Mas não valia a capa protetora dos amigos desencarnados.

Deixara nome, tradição, legados, necrológios brilhantes. E, sem dúvida, distribuíra fartas sobras da existência regalada, confortando a muitos.

No fundo, porém, João Martinho não se sentia bem consigo mesmo.

Roubara dos parentes, num processo de herança, para começar a fortuna. E depois, no comércio, fora homem de memória curta e mão leve. Isso tudo, agora, era assim como cravo de fogo enterrado na consciência.

“Martinho, você foi hoje carinhosamente lembrado na Terra.”

“Martinho, alguém está agradecendo as suas doações.”

Amigos revezavam-se, ofertando-lhe notícias confortadoras, mas sempre recebiam estas respostas lamentosas:

“Sim, mas eu furtei.”

“Sim, mas fui um ladrão.”

Era desse modo que o pensamento dele reagia. Contudo, ante o bem que fizera, estava perdoado. Perdoado por todos. Entretanto, por dentro não se desculpava.

Aumentando a cultura espiritual, não aguentou as acusações silenciosas que lhe nasciam da cabeça, como borralho de fogão sereno, e pediu o retorno. Recomeçar era a grande esperança.

E Martinho recomeçou…

II

Decorridos quarenta anos, João Martinho podia ser visto em novo corpo de carne.

Funcionário de banco, não conseguia realizar os próprios ideais. Parecia um devedor insolvável, diante da família.

Desde cedo, começara a trabalhar, ajudando o pai doente. E depois que o pai desencarnou, foi o amparo das irmãs menores. Devia fazer prodígios para não se endividar no fim do mês. E, após o casamento das duas manas mais velhas, caíra enferma a própria mãezinha, com paraplegia irremediável.

João procedia corretamente. Tudo a tempo e a hora. Surgiu, porém, a ocasião em que passou a sentir prolongada agonia moral.

Um companheiro, que lhe partilhava as responsabilidades em serviço, desviava somas enormes. Emitia vales e forjava documentos falsos, cujas cópias atirava na cesta.

Antevendo complicações futuras, Martinho retirava todos os papéis comprometedores, do depósito de lixo, e os guardava.

Rara a semana em que não chegava a casa, com várias peças na direção do arquivo. Possuía no aposento um cofre particular, com fundo falso, cujo segredo somente ele, Martinho, conhecia. E nesse último escaninho amontoava as provas da culpabilidade do amigo infeliz.

Em sã consciência, não podia formular acusações prematuras. O rapaz talvez tivesse “costas quentes”, e poderia ser considerado caluniador “se levantasse a lebre”, antes da hora. Era preciso, no entanto, defender-se. Uma hora difícil poderia chegar.

Durante quatro meses, a situação perdurava inquietante, quando veio o inesperado… O moço leviano conheceu a morte num desastre, em noite de farra.

III

Era setembro…

Martinho pensou no imperativo do esclarecimento. Mas seria justo acusar um morto, do qual ninguém lhe pedia contas?

Calou-se e esperou… Eis que surge, porém, o fim de ano.

Balanço ativo.

Martinho preparou a papelada para qualquer circunstância.

Quando a tomada de contas no banco ia em meio, o correto funcionário sofre um choque profundo. A casa humilde em que reside é assaltada, enquanto assiste à desencarnação da mãezinha no hospital.

Desolado, João verifica que o assaltante carregara todos os objetos de valor, inclusive o cofre em que deitava os documentos íntimos.

Desconfiança terrível incendeia-lhe o crânio.

Decerto, o colega morto tinha cúmplices. E os cúmplices haviam fingido uma “limpa” em regra.

Desfigurado, volta ao banco, depois de haver solucionado os problemas do funeral materno, e encontra a bomba estourada.

O diretor chama-o a falas. Naturalmente esperara dois dias, em consideração à sua dor de filho. Mas coloca o assunto em telas claras.

João foi responsabilizado pelo desfalque de um milhão e duzentos mil cruzeiros.

Martinho alarmou-se, rogou, reclamou e chorou, mas não conseguiu articular qualquer defesa.

IV

Recolhido à cadeia correcional, onde foi condenado a dois anos de prisão, depois de rumoroso processo, Martinho tentou o suicídio. Amigos, contudo, puseram-lhe nas mãos a literatura espírita.

E Martinho devorou livros, narrativas, conceitos e ideias… Acalmou-se. Descobriu o poder da prece. Acolheu a prova, como o boi recebe a canga. Aceitou a reencarnação. No íntimo, estava convicto de que fora vítima desse ou daquele companheiro interessado em livrar-se da justiça, mas compreendeu que devia perdoar.

Ainda assim, a mudança de vida alterou-lhe a saúde. A tuberculose ganhava área e o coração fatigado parecia motor falhando…

No dia garoento em que saiu do cárcere, depois de cumprida a pena, era uma sombra.

Raros fios de cabelo desciam da calva procurando ocultar-lhe a orelha. Caminhava dificilmente. Tossia.

Suspirava por um caldo quente.

Cambaleando quase, atingiu a moradia da única irmã casada que ainda lhe possibilitava ligação, mas recebeu apelo injusto.

— João — disse ela —, aqui estão vinte cruzeiros para você. É tudo o que eu tenho, mas não posso hospedá-lo. Meu marido não compreenderia. Temo ofensas. Volte amanhã. Conversarei com ele hoje à noite e veremos o que será possível fazer.

Martinho, humilhado, foi ao bar próximo. Tomou um café e começou a perambular.

Receava buscar amigos.

Cansado, trêmulo, vendo que a noite baixava, procurou, procurou… até que viu velha casa abandonada num terreno baldio de bairro pobre. Conseguiu jornais velhos, aqui e ali, e entrou, disposto a dormir.

Num canto de parede semiderruída tropeçou em algo. Abaixou-se. Surpreendido, tateou o objeto.

Era um cofre, sem dúvida! Carregou-o para local menos escuro. Espantado, verificou que era o antigo cofre de sua propriedade, largado ali por alguém…

Fora violado, escancarado, mas percebeu que o fundo falso não fora aberto.

Gastou tempo e força e acabou descerrando o escaninho. E todos os documentos que o inocentavam apareceram.

Agora, percebia que toda a suspeita em torno dos amigos do Banco era realmente infundada. Fora pilhado, sim, por malfeitores vulgares.

Martinho, fatigado, contemplou os papéis que lhe teriam sido preciosos, anos antes.

Deitou-se no piso escalavrado. Releu todos, um por um. Em seguida, acendeu um fósforo e queimou-os em monte.

Escurecera de todo. Por muito tempo, Martinho orou e pensou… E, por fim, a tosse. Depois, o silêncio. Martinho enlanguescera.

E, a princípio, só as formigas e os cães tomaram conhecimento de que havia no local um corpo morto, como feixe de ossos moles renteando um punhado de cinzas.

 

Do livro Almas em desfile, mensagem psicografada pelo médium Waldo Vieira.


 

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita