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por Vladimir Alexei

 

Distopia Espírita

 
Há alguns anos observamos as mudanças do movimento espírita. Mudanças que refletem o estado das coisas e pessoas que divulgam o Espiritismo.

Há anos vemos uma luta inglória, de confrades e confreiras, em persuadir, convencer e até modificar outras pessoas, de que não existe Espiritismo sem o trabalho magistral de Allan Kardec.

Há anos percebemos que essa luta é uma profunda perda de tempo e respeito à diversidade, principalmente quanto aos métodos de se aprender sobre o Espiritismo. Funciona como o “Evangelho e Jesus”: o Evangelho só existe, independentemente de ter sido adulterado ao longo da história, por causa de Jesus. O Evangelho é a Sua mensagem. Isso é tão natural e lógico que não se discute: o Cristão é aquele que segue os ensinamentos do Cristo. Quais ensinamentos? Do Evangelho.

O mesmo pensamento deveria ocorrer em relação ao “Espiritismo e Kardec”: é tão natural e lógico que, ao falar de Espiritismo, fala-se necessariamente do trabalho de Allan Kardec. Não seria nem necessário discutir isso.

Os puristas dirão que é diferente, e até argumentaríamos que sim, em parte, já que o trabalho de Allan Kardec para muitos é considerado o “meio”, sendo a “causa” as instruções dos Espíritos. Argumentaríamos, por nossa vez, que também isso ocorre, entretanto, sem o trabalho magistral de fundar uma “Doutrina”, realizado por Allan Kardec, continuaríamos a entender de forma fragmentada aquilo que os Espíritos diuturnamente tentam nos dizer, daí a grandeza do seu trabalho. E continuaríamos a discussão, no bom sentido, até chegarmos a um ponto em que não sobrassem dúvidas, se é que existe esse ponto...

É isso que temos visto no movimento espírita. Uma preocupação feroz com a “forma”, enquanto o conteúdo é relegado a outros planos. Ou, como diria Descartes, “é possível, porém, que me engane e talvez não passe de cobre e vidro o que tomo por ouro e diamante”. Aprisionamos as pessoas que procuram o Espiritismo às obras de Kardec, como se ali estivesse o que eles procuram. Citamos o nome de Kardec para validar pensamentos que passam longe de serem doutrinários...!

Muitos, ao recorrerem ao Espiritismo, buscam medicamento (esclarecimento, luz, orientação, apoio etc.) para a cabeça em chamas, com vontade quase irrefreável de tirar a própria vida, e pessoas sem a menor empatia e sensibilidade ante a dor do próximo iniciam “pregação” salvacionista por meio das “obras de Kardec”. Talvez um dos motivos da baixa adesão de jovens ao Espiritismo pode ser entendido por essa “camisa de força” que existe e é adotada por grande parte dos espíritas que assumem as tribunas (e agora as “lives”).

Pensar tornou-se artigo de luxo. É melhor rotular, enquadrar, padronizar e pasteurizar porque daria menos trabalho e atingiria um público cada vez maior, como se o Espiritismo fosse para a “massa”. O Espiritismo é para todos, falando às necessidades de cada um individualmente, e não à coletividade como a pregar para a “multidão”.

O Dalai-Lama, que conviveu com Gandhi, diz, em uma de suas obras, que, mais importante do que a “religião”, são os “princípios”. Valores como a “benevolência” e o “amor”. Segundo o budista, as pessoas até podem viver “sem religião”, mas não poderiam viver sem “ética”. Valores que são sustentados pela ética, como a bondade, compaixão e empatia, são cada vez mais necessários em um mundo que vive uma pandemia.

Se o objetivo da vida, nos dizeres de Léon Denis, é a educação da alma, caberia ao espírita uma dedicação maior em compreender os mecanismos, a capilaridade e as relações divinas do amor, mais do que discutir o trabalho alheio que incomoda, e que, possivelmente, não tem vinculação nenhuma com o amor.

Para o Espírita, assim como para o Cristão, o erro não está em não saber o que fazer e nem como fazer, nem em cometer mais erros e, sim, em perder o foco, em esforçar-se por criar um ambiente distópico, frágil em fraternidade e amor, repleto de armadilhas e prisões onde o aprendizado “só ocorre” se estudar primeiro Kardec, se conhecer as obras de “fulano” e de “beltrano”. Em um processo didático-pedagógico, a construção metodológica da educação moderna recomenda começar pelo “simples” e avançar para o “complexo”. Desde quando o trabalho de Allan Kardec é simples? Requer passos iniciais anteriores – para a maioria, mas não necessariamente para todos.

Somos, como aprendizes do Cristo, melhores do que isso. Evoquemos o que há de melhor em cada um de nós, para que “brilhe a vossa luz”. E se, agindo assim, houver abertura para falar de Kardec, Chico Xavier, Léon Denis e outros, não perca tempo: semeie a busca pela Verdade!


 

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita