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por Ricardo Baesso de Oliveira

 

Limitações ao autoconhecimento


O Livro dos Espíritos
, primeira obra da codificação kardequiana, coloca que o conhecimento de si mesmo é o meio prático mais eficaz para se melhorar já nesta vida e resistir à atração do mal.[i]

Assim, tem sido proposto que a dinâmica da reforma íntima se inicie pelo autoconhecimento, ou seja, a identificação em nossa personalidade de traços dos defeitos morais.

De acordo com estudiosos da Psicologia social [ii] o autoconceito consiste na representação mental que construímos acerca de nosso eu. Formamos uma imagem de nós mesmos basicamente da mesma maneira que formamos uma impressão acerca de outras pessoas. A partir da percepção de nós mesmos (nosso sexo, as características de nossa família, nossas preferências, nossos valores, os grupos aos quais nos associamos) e da percepção de como nos relacionamos e nos comparamos com os outros, que nosso autoconceito se forma.

O autoconhecimento, em realidade, transcende a identificação de nossas más inclinações, e se importa igualmente com a revelação de todos os traços de nossa personalidade, incluindo nossas boas qualidades, nossas habilidades úteis, além do reconhecimento de nossas potencialidades e limitações cognitivas, revelando a cada um até aonde pode ir, e como chegar lá. O autoconhecimento se identifica, enfim, com o desenvolvimento pleno de nossa humanidade e se relaciona com diferentes formas de conhecimento.

O autoconhecimento é uma ferramenta necessária e extraordinária no processo da transformação moral, no entanto, particularmente ao que se refere à identificação das más inclinações, se acompanha de dificuldades que, poucas vezes, são examinadas.

O processo em si mesmo, tal como proposto por Santo Agostinho, nas conhecidas questões 919 e 919-a de O Livro dos Espíritos, exige do sujeito envolvido um discernimento de razoável magnitude, que só será visto em personalidade dotada de certo desenvolvimento intelecto moral. Desenvolvimento intelectual será necessário para avaliar adequadamente cada ação pessoal, qualificando-a quanto à sua condição de benignidade ou não, de utilidade ou não, de superioridade ou não. Desenvolvimento moral igualmente será necessário, particularmente, boa dose de humildade, permitindo ao indivíduo reconhecer-se como um ser imperfeito. Grande parte dos avarentos se considera apenas prevenido, e parte significativa das personalidades arrogantes dirá que não se trata de orgulho e sim de dignidade humana.

Necessário considerar também questões afeitas aos mecanismos psicológicos de defesa do ego. O processo de introspecção está sempre sujeito a interferências não conscientes. Segundo os psicólogos, a crítica mais frequente apresentada à introspecção como meio de autoconhecimento deriva da existência de um mecanismo psicológico denominado repressão. Tendemos a manter fora de nossa consciência, por meio desse mecanismo, tudo aquilo que nos provoca ansiedade e nos ameaça. Por isso, permanece o fato de não nos ser possível atingir certas características de nosso eu, seja porque existe uma motivação inconsciente de reprimir conteúdos psíquicos indesejáveis, seja porque a arquitetura da mente inclui partes que nos são inacessíveis a partir de esforço consciente.

Importante acrescentar que, segundo estudos da Psicologia social, agimos quase sempre tendendo proteger nossa autoestima. A autoestima é a autoavaliação que fazemos de nosso autoconceito. Quando essa avaliação é positiva, dizemos que a pessoa tem alta autoestima, e quando nossa avaliação de nós mesmos é negativa, dizemos que a autoestima é baixa. No processo de auto-observação de nosso comportamento muitas vezes contrapomos nosso comportamento atual ao de modelos ideais internalizados. Possuímos um eu real e um eu ideal. O primeiro consiste no conhecimento de como somos; o segundo refere-se ao que gostaríamos de ser. Quanto maior a discrepância entre o eu real e o eu ideal, menor a nossa autoestima.

Todos temos uma tendência de manter uma imagem positiva de nós mesmos. Nosso ego funciona como um ditador que censura tudo aquilo que nos é indesejável acerca de nós. Mantemos ilusões positivas a fim de nos sentirmos bem e continuarmos tendo uma autoimagem positiva. Ao analisarmos a realidade, ao invés de encontrarmos um cientista em genuína procura da verdade, nós nos deparamos com a constrangedora figura de um charlatão procurando fazer com que os dados apareçam da forma mais vantajosa possível para a confirmação de suas teorias. Assim agimos também quando processamos os dados relativos ao nosso autoconceito. A partir de negação da realidade e de ilusões positivas, fortalecemos uma visão favorável de nosso autoconceito e de nossa autoestima. Essa tendência é tão arraigada em nós que frequentemente nos recusamos a reconhecer nossos erros, recorrendo a racionalizações, negação e outros mecanismos de defesa a fim de justificar nossos erros e manter intacta nossa autoestima.[iii]

Mas que outro processo pode nos oferecer elementos para a transformação pessoal? Especificamente ao que se relaciona à busca das virtudes morais, além do autoconhecimento, se impõe o conhecimento do bem, ou seja, o reconhecimento de como as virtudes se manifestam, e de como agem as pessoas virtuosas, e isso pode ser obtido com o estudo continuado da Doutrina espírita.

Lembra-nos Kardec que à medida que os homens se instruem acerca das coisas espirituais, menos valor dão às coisas materiais [iv] e que o egoísmo se enfraquecerá, sobretudo, com a compreensão que o Espiritismo nos faculta do nosso estado futuro, real e não desfigurado por ficções alegóricas. Quando bem compreendido, acrescenta nosso codificador, quando se houver identificado com os costumes e as crenças, o Espiritismo transformará os hábitos, os usos, as relações sociais.[v]

Referindo-se ainda à educação como chave fundamental no melhoramento moral, Kardec acrescenta que ela o fará utilmente quando se basear no estudo aprofundado da natureza moral do homem. Pelo conhecimento das leis que regem essa natureza moral, chegar-se-á a modificá-la, como se modifica a inteligência pela instrução e o temperamento pela higiene.[vi]

O conhecimento do bem nos identificará com o repositório dos defeitos e virtudes humanos, onde se estabelecem os vícios e as más e boas inclinações, e nos apresentará as medidas que devem ser tomadas nas mudanças de hábitos, costumes e reações perante o outro. Sabemos, independentemente do conhecimento específico de nosso mundo íntimo, que somos ainda detentores de traços e comportamentos infelizes. No estágio evolutivo em que nos encontramos, possuímos, mais ou menos, os mesmos defeitos. Quem, em sã consciência, dirá a si mesmo ter vencido a soberba, a inveja, o ciúme, ou se reconhecerá infinitamente paciente e inclusivo?

O que fará de nós pessoas melhores é, sobretudo, o conhecimento aprofundado das virtudes e a sequência de ações que podem nos aproximar delas. Compreender como o bem se manifesta e, a partir daí, canalizarmos nossos pensamentos e ações em conformidade com o bem perfeitamente compreendido.

Assim, torna-se eficaz:

Reconhecer-se invejoso e entender como agem os não invejosos.

Saber-se ciumento e examinar como se comportam os não ciumentos.

Reconhecer o hábito da preguiça mental e ver-se diante das ações de um diligente.

Admitir-se autoritário e saber identificar como se manifesta o não autoritarismo.

Façamos uma analogia. Temos um balde cheio de água suja e desejamos trocá-lo por outro com água limpa, mas não podemos, simplesmente, jogar a água fora. O que fazer? Colocá-lo embaixo de uma torneira onde corre água limpa. Com o tempo a água suja transbordará do balde, sendo, paulatinamente, substituída pela limpa. Pouco vale indagar sobre o tipo de sujeira, quem sujou a água ou há quanto tempo encontra-se suja. Importa a ação que a torne limpa!

Emmanuel admite que a sabedoria começa na aquisição do conhecimento,[vii] e que para desatar as algemas do mal que nós mesmos forjamos em detrimento de nossas almas nos compete buscar o bem, senti-lo, mentalizá-lo e plasmá-lo com todos os potenciais de realização ao nosso alcance.[viii]

Conhecer e amar, instruir-se e servir, esclarecer-se e cultivar o espírito da boa vontade: esse o caminho! 


 


[i] O Livro dos Espíritos, item 919.

[ii] Psicologia social (Aroldo Rodrigues, Eveline Assmar e Bernardo Jablonski, cap. 4.)

[iii] Psicologia social (Aroldo Rodrigues, Eveline Assmar e Bernardo Jablonski cap. 4: Conhecendo-nos a nós mesmos.)

[iv] O Livro dos Espíritos, item 914.

[v] O Livro dos Espíritos, item 917.

[vi] O Livro dos Espíritos, item 872.

[vii] Pensamento e vida, Emmanuel, cap. 4.

[viii] Pensamento e vida, Emmanuel, cap. 10.




 

     
     

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 Revista Semanal de Divulgação Espírita