Correio mediúnico

Espírito: Maria da Glória

Consciência ferida


Meus amigos. Deus nos ampare.

Depois de minha primeira visita, eis que torno à vossa casa, que funcionou para mim como um ninho de socorro e um tribunal de justiça.

Mulher padecente, trazia enlaçado a mim, qual se fora erva sufocante sobre árvore ferida, o Espírito revoltado de meu próprio filho, cuja reencarnação impedi, num processo de aborto, no qual, por minha vez, perdi a existência.

Leviana e surda ao dever, adquiri compromissos com a maternidade, detestando-a. E, por odiar o rebento que me palpitava no seio, procurei destruí-lo, usando venenosa beberagem que igualmente me furtou a vida corpórea.

Entretanto, se supunha que a morte fosse um ponto final à minha tragédia íntima, estava profundamente enganada, porque da poça de sangue a que se me reduziram os despojos, levantou-se, diante de mim, uma sombra acusadora.

A princípio, dessa nuvem amorfa nascia o choro incessante de uma criança recém-nata. Tentando emudecer aqueles vagidos angustiosos, inutilmente rezei, usando orações decoradas na infância…

A nuvem, porém, jazia algemada ao meu próprio peito, através de laços cuja consistência ainda hoje não posso definir. Abandonei, amedrontada, o meu aposento de mulher solteira e, esquecendo o culto do prazer a que me dedicara, procurei fugir, como se eu pudesse escapar de mim mesma.

Perdi a ideia de rumo… Esqueci o calendário. De minha memória desapareceu a noção de tempo. Guardava a consciência de que a nuvem e eu corríamos sem cessar… Houve, contudo, um momento em que a sombra se converteu na forma de um homem, que me perseguia, amaldiçoando:

— Desnaturada! Assassina!… Assassina!…

Anelei, assim, depois da morte, a vinda de outra morte que me afundasse no esquecimento. Sentindo sede, debruçava-me no charco… Torturada de fome, atirava-me aos detritos dos animais mortos no campo…

Ah! como será possível alguém adivinhar na Terra, enquanto a bênção do corpo físico é uma graça para o Espírito que opera entre os homens, o tormento da consciência que edificou em si mesma o inferno que a envolve?

Minha existência passou a ser um suplício constante, terrível, inominável… Chegou, todavia, a noite em que, à maneira de náufrago fatigado, vim dar à praia de vosso templo. Mãos amigas apartaram-me da sombra agressiva a que me prendia, agoniada… O alívio surgiu, por fim… Entretanto, de alma conturbada, roguei esclarecimento para o meu desvario, embora conhecendo a minha culpa de pecadora penitente. Recebi, de imediato, a resposta.

Um de vossos amigos — justamente aquele que me acompanha aqui, nesta noite, com fins educativos – submeteu-me a longa intervenção magnética e, fazendo com que minhas reminiscências recuassem no tempo, vi-me no Rio, menina malnascida, amparada por nobre mulher. Para ser mais explícita, devo adiantar que essa criatura era Dona Mariana Carlota, a Condessa de Belmonte, aia do Imperador D. Pedro II, ainda criança.

Fui conduzida ao leito de pálida menina enferma, que morria pouco a pouco… Essa menina era a Princesa Dona Paula, que se afeiçoou a mim, com natural carinho. Mas, por morte dela, eu ficava aos treze anos novamente desamparada. No entanto, benfeitores do palácio estenderam-me braços generosos e fui mantida em São Cristóvão, na posição de criada humilde.

Aos vinte de idade, desposei um artesão da Casa Real. Miguel era o nome de meu marido. Duas filhas vieram ao nosso encontro. A tentação dos prazeres carnais, porém, fascinava-me o Espírito inferior. Foi assim que aceitei a proposta indigna de um homem que me arrancou do lar para delituosa aventura.

Na tela de minhas recordações, surgiu então a noite do dia 4 de setembro de 1843, noite festiva que consagrou o casamento daquele que era o Imperador do Brasil.

Mulher moça, esposa e mãe, olvidei minhas obrigações e fui à procura de quem passara a ser o adversário de minha felicidade, a fim de receber-lhe a companhia, na rua Direita, junto ao Arco do Triunfo, com o qual se comemorava a grande cerimônia.

O Rio, nessa data, acolhia a nova imperatriz dos brasileiros. É necessário me detenha nesses fatos — esclarece o benfeitor que me auxilia —, para marcar em nossa lição que o tempo não desaparece com o passado, continuando vivo em nosso presente, como estará também vivo para nós, no grande futuro…

Na noite a que me reporto, fui surpreendida por meu esposo, numa atitude de desconsideração aos compromissos que abraçara. Miguel não resistiu. Respondeu-me à loucura com o suicídio. Transformou-se-me, então, a vida. Dificuldades sobrevieram. Enjeitei minhas filhas. Partilhei o destino do aventureiro que, em seguida à minha irreflexão, me atirou ao resvaladouro das mulheres de ninguém…

Entretanto, a sombra de meu companheiro suicida nunca mais se apagou de meus passos. Seguiu-me, não obstante desencarnado, agravou-me as provações e reuniu-se a mim, quando me desliguei do corpo de carne, num asilo de alienados mentais, depois de atribulada peregrinação pelo meretrício.

Escuros tempos assomaram-me à lembrança. O caminho expiatório é um trilho de sofrimentos e reparações, e nós éramos dois condenados, respirando a escuridão de noite profunda…

Uma noite imensa, povoada de gemidos, de blasfêmias, de dor… até que renasci na carne, novamente em corpo de mulher. Amando-me e odiando-me ao mesmo tempo, Miguel intentara ser meu filho, contudo, arruinei-lhe os propósitos, recusando a maternidade menos feliz, retornando nós dois, desse modo, às trevas de onde vínhamos.

Agora, tudo de novo a recomeçar… Um século, meus amigos… Um século de um erro a outro erro… Vede o martírio da mulher que em cem anos nada mais fez senão transviar-se por invigilância! De 1943 até o ano findo, padecimentos novos me exacerbaram a luta, até que a prece e o amor me socorreram.

Venho, pois, compartilhar-vos a oração, a fim de que me renove, de modo a partir dignamente ao encontro do esposo que buscou reaproximar-se de mim, na condição de filho, para, de alguma sorte, ensaiarmos juntos a jornada reparadora.

Com a presente narrativa, não tenho outro intuito senão dizer-vos que a vida está continuando… Que o trabalho não cessa… Que o tempo não morre… E que ai daqueles que caem, porque o soerguimento, muitas vezes, constitui fogo e fel no coração.

Sou um Espírito em reajuste. Alguém que vos bate à porta, rogando amparo. Pobre mulher que fala às outras, avisando-as quanto ao flagelo que nos aguarda, cada vez que o nosso coração foge aos princípios superiores da senda de elevação…

Expresso-me, assim, porque os homens, até certo ponto, são produto de nossa influência e domínio. Os homens que nos partilham o leito, que se nutrem do pão que amassamos, que nos absorvem os pensamentos e que nos ouvem as palavras, são nossos filhos e nossos irmãos, dependendo de nós para a vitória da Justiça e do Bem.

Que o Senhor nos dê consciência de nosso mandato! Que as companheiras presentes me ajudem com as suas preces, aproveitando igualmente a experiência aflitiva da mísera irmã que, em se perdendo, há tanto tempo, ainda não conseguiu recuperar-se… Que Deus nos ilumine!…

 

Do livro Instruções psicofônicas, de autores diversos, pelo médium Francisco Cândido Xavier.



 

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita