Especial

por Alexandre Fontes da Fonseca

Mecanismos da Mediunidade segundo o Espiritismo Parte 1

Resumo: “Mecanismos da mediunidade” é o título de obra espírita de natureza mediúnica, muito conhecida no meio espírita. Utilizando conceitos de Física, Química e Engenharia Elétrica, essa obra se propôs a apresentar uma explicação, com base nesses conceitos, dos mecanismos do fenômeno mediúnico. Em vista dos conceitos científicos utilizados não serem de fácil entendimento dos companheiros espíritas em geral e do crescente interesse do movimento espírita em descrever os fenômenos espíritas com base apenas na Doutrina Espírita, apresentamos um estudo sobre os mecanismos da mediunidade segundo, apenas, as obras de Kardec. Basicamente, os mecanismos da mediunidade segundo o Espiritismo decorrem dos seguintes conceitos: i) os Espíritos modificam o FU através do pensamento e vontade, impregnando-o de qualidades e informações que desejem; ii) o perispírito é formado pela condensação do FU em torno do Espírito que é o foco de inteligência, e as qualidades dos fluidos do perispírito dependem do grau de evolução do Espírito; iii) o perispírito serve de transmissão ao pensamento, como o fio elétrico; iv) os Espíritos se comunicam com os médiuns da mesma forma que com os Espíritos propriamente ditos, tão só pela irradiação dos seus pensamentos; v) para um Espírito desencarnado se comunicar com o do encarnado, o fluido do médium, através da sua expansão perispiritual, se combina com o perispírito do Espírito desencarnado; vi) os Espíritos tem mais facilidade para responder, por efeito da afinidade existente entre o nosso perispírito e o do médium que nos serve de intérprete. A explicação para esses itens e as devidas citações em Kardec são apresentadas no artigo. Esse artigo pode ser usado como base para preparação ou revisão de cursos sobre Espiritismo e mediunidade.

Introdução

Em 1959, A Federação Espírita Brasileira publicou a obra Mecanismos da Mediunidade, de autoria espiritual de André Luiz e psicografada por XAVIER & VIEIRA (1990). Emmanuel, mentor de Chico Xavier, e André Luiz prefaciaram a obra. Enquanto Emmanuel classifica a obra acima como sendo um “livro que estuda”, André Luiz afirma que a obra vale “por vestimenta necessária, mas transitória, da explicação espírita da mediunidade”. Concordamos com Emmanuel que a obra acima é de estudo, e concordamos com André Luiz sobre a necessidade de termos uma explicação espírita da mediunidade. Mas a obra acaba por usar como referência teórica, interpretações nem todas triviais de vários conceitos da Física, da Química e da Engenharia Elétrica. Isto é, a obra usa como vestimenta esses conceitos da Ciência. Não somos contrários à tentativa de desenvolver o entendimento de um assunto por ângulos diversos. Mas, para a obra atingir o propósito de ser de estudo, é necessário que o movimento espírita domine muito bem o conteúdo da Doutrina Espírita para poder, inclusive, analisa-la e avalia-la doutrinariamente.

Embora a intenção do autor espiritual de Mecanismos da Mediunidade, em usar conceitos modernos da Ciência para desenvolver um entendimento para os mecanismos do fenômeno mediúnico, seja nobre, o desconhecimento, por parte dos espíritas, do significado desses conceitos científicos prejudicou o atingimento desse propósito. Como um efeito colateral imprevisto, outros companheiros espíritas e espiritualistas, embora bem intencionados, construíram sistemas, teorias, propostas ou descrições de diversos fenômenos espiritualistas, seguindo o exemplo de André Luiz, isto é, se utilizando igualmente de conceitos científicos da Física, da Química e da Engenharia. Infelizmente, porém, algumas dessas teorias foram demonstradas estarem incoerentes com a Doutrina Espírita (DA FONSECA, 2012, 2013a, 2013b).

Tentativas de amenizar a dificuldade na conceituação científica de Mecanismos da Mediunidade existem na literatura espírita. Esclarecimentos sobre os conceitos e analogias científicas usadas por André Luiz nessa obra foram apresentados por DA FONSECA (2016b, 2017). Além de mostrar que várias das analogias realizadas por André Luiz são muito boas, desde que entendidas de modo adequado, DA FONSECA (2016b, 2017) também esclarece a validade de algumas interpretações importantes como achar que pensamento é uma onda eletromagnética. Sugerimos o leitor interessado acessar os artigos acima.

Mas, a questão que se apresenta aqui é outra. Mesmo havendo esclarecimentos sobre os pontos técnicos/científicos da obra Mecanismos da Mediunidade, ainda muitas pessoas não se sentem confortáveis com conceitos científicos que só se compreende bem após anos de estudo em nível universitário. Seria, então possível revisitar a obra de Kardec e descobrir com base somente nela, quais os mecanismos da mediunidade? Será que a obra de Kardec é capaz de fornecer, igualmente, uma explicação para os mecanismos da mediunidade?

Neste artigo, nós procuramos realizar isso. Isto é, revisitamos os conceitos genuinamente doutrinários, ou seja, apenas aqueles contidos na obra de Allan Kardec, em busca da identificação dos conceitos necessários à apresentação dos mecanismos da mediunidade segundo, apenas e exclusivamente, o Espiritismo[1]. Na atualidade, percebe-se que o movimento espírita tem buscado incentivar um maior comprometimento com a coerência doutrinária (MILANI, 2018, CARRARA, 2019). Dessa forma, é de interesse do leitor e o pesquisador espírita descobrir como a Doutrina Espírita descreveria os mecanismos da mediunidade. Isso seria importante até mesmo para poder avaliar e valorizar a proposta de André Luiz ou de outros autores em termos de coerência com a Doutrina Espírita. Aqui, portanto, encontrar-se-á uma explicação formal dos mecanismos da mediunidade de acordo com Kardec. Se houver interesse, esse material poderá ser usado na preparação e/ou revisão de material de cursos de Espiritismo e/ou de mediunidade segundo Kardec.

Na literatura espírita, encontramos alguns trabalhos que buscam descrever os fenômenos espíritas com base nas obras de Kardec. Jader SAMPAIO (1999), por exemplo, identifica um aspecto comum nos mecanismos do fenômeno de sonambulismo e clarividência, que é a emancipação da alma. Rubens P. MEIRA (2013) apresenta as funções e propriedades do perispírito em termos das obras de Kardec, discutindo a validade doutrinária de algumas afirmativas presentes no meio espírita. Porém, uma descrição detalhada de como a mediunidade ocorre, independentemente do tipo, em termos apenas dos conceitos contidos nas obras de Kardec, ainda não existe até onde pudemos investigar.

Nas seções seguintes, apresentamos, primeiro uma revisão dos conceitos fundamentais de fluidos e perispírito. Em seguida usamos esses conceitos na construção de uma explicação genuinamente espírita, dos mecanismos da mediunidade segundo a Doutrina Espírita.

II. Fluidos e perispírito

Nessa seção iremos apresentar as definições dos conceitos de fluidos e perispírito conforme apresentados por Kardec e os Espíritos. Apresentaremos esses conceitos numa ordem didática descrevendo de modo resumido, os dois elementos gerais da criação, suas propriedades e como eles se relacionam.

II.1 Fluido universal e fluidos espirituais

Das questões de 21 a 28 de O Livro dos Espíritos (LE) (KARDEC, 1995), Kardec apresenta aos Espíritos perguntas sobre o que seriam a matéria e o espírito[2]. Começa fazendo perguntas sobre a matéria, que é algo que já conhecemos, e depois pergunta “Que é o espírito?” (questão 23) para o que recebe a seguinte resposta: “O princípio inteligente do Universo.”

Daí, na questão 27 do LE, Kardec pergunta se espírito e matéria seriam os elementos gerais do Universo, ao que os Espíritos responderam que sim mas que: “ao elemento material se tem que juntar o fluido universal, que desempenha o papel de intermediário entre o espírito e a matéria propriamente dita, por demais grosseira para que o espírito possa exercer ação sobre ela.”

Nessa parte da resposta, identificamos um conceito distinto: o fluido universal. O que seria o fluido universal? No capítulo XIV de A Gênese (GE) (KARDEC, 2010), Kardec apresenta um importante estudo sobre os fluidos. No item 2 deste capítulo ele apresenta a definição de fluido cósmico universal ou fluido universal (abreviaremos por FU de agora em diante): 

“(...) o fluido cósmico universal é a matéria elementar primitiva, cujas modificações e transformações constituem a inumerável variedade dos corpos da Natureza. Como princípio elementar universal, ele apresenta dois estados distintos: o de eterização ou de imponderabilidade, que se pode considerar como o estado normal primitivo, e o de materialização ou de ponderabilidade, que, de certa maneira, é apenas consecutivo àquele outro. O ponto intermediário é o da transformação do fluido em matéria tangível, mas, ainda aí, não ocorre uma transição brusca, uma vez que podemos considerar nossos fluidos imponderáveis como um ponto intermediário entre os dois estados.” (Grifos em negrito, nossos).

O FU é, portanto, a matéria prima de tudo o que é material na natureza. Nas palavras de Kardec acima, as transformações do FU “constituem a inumerável variedade dos corpos da Natureza.” Mas isso diz respeito às coisas materiais que formam o universo visível e conhecido. E com relação aos chamados fluidos espirituais? Primeiro, vamos compreender dois conceitos presentes na citação acima: ponderabilidade e imponderabilidade.

Ponderável é uma qualidade de algo que é passível de ser pesado. Em outras palavras, ponderabilidade é uma propriedade de objetos materiais que são sensíveis às forças de atração gravitacional do nosso planeta e, portanto, podem ser pesadas. Não confundir isso com a propriedade da massa de um objeto. Por exemplo, o gás hélio é tido como imponderável, mas ele tem massa. Segundo a Doutrina Espírita, tanto a matéria “etérea” ou imponderável quanto a matéria densa, tangível e ponderável são formadas pelo FU.

À época de Kardec, acreditava-se que, por serem fenômenos invisíveis e impalpáveis, o calor, o magnetismo e a eletricidade eram formados por fluidos imponderáveis. Hoje, embora a ciência descreva esses mesmos fenômenos de outra maneira, o conceito de fluidos e sua imponderabilidade encontraram grande coerência com os ensinamentos dos Espíritos, de modo que do ponto de vista filosófico, fluido é uma palavra presente na Doutrina Espírita que não requer atualização. DA FONSECA (2016a) apresentou explicações sobre a atualidade do termo “fluidos” no Espiritismo.

Mas o que são, então, os fluidos, ou os fluidos espirituais?

Para chegar à resposta, citamos Kardec que, logo depois de definir o FU, apresentou uma correspondência entre a matéria ponderável e os fenômenos materiais, conhecidos e estudados pela nossa Ciência, e a matéria imponderável (os fluidos) e os fenômenos espirituais ou psíquicos. No item 3 do capítulo XIV de GE, Kardec diz:

“No estado de eterização, o fluido cósmico não é uniforme. Sem deixar de ser etéreo, ele sofre modificações também variadas no seu gênero, talvez mais numerosas do que no estado de matéria tangível. Essas modificações constituem fluidos distintos que, embora procedendo do mesmo princípio, são dotados de propriedades especiais e dão lugar aos fenômenos particulares do mundo invisível.” (Grifos em negrito, nossos).

Kardec, então, afirma que algumas das modificações do FU são tais que estão presentes apenas nos fenômenos particulares do mundo invisível. O FU assim modificado, dá origem aos fluidos espirituais. Isto é, fluidos espirituais são modificações do FU que estão presentes nos fenômenos espirituais. Kardec faz uma ressalva de natureza filosófica, ao comentar o seguinte no item 5 do cap. XIV da GE:

“A classificação de fluidos espirituais não é rigorosamente exata, uma vez que, definitivamente, eles são sempre matéria mais ou menos quintessenciada. De espiritual, realmente, só a alma ou princípio inteligente. Essa denominação é adotada apenas por comparação e, sobretudo, pela afinidade que esses fluidos têm com os Espíritos. Pode-se dizer que são a matéria do mundo espiritual, razão pela qual são chamados fluidos espirituais.” (Grifos em negrito, nossos).

Essa ressalva ressalta a correspondência entre os fluidos espirituais e o fato de que é com eles ou através deles que ocorrem os “fenômenos particulares do mundo invisível”.

Resta agora, esclarecer como os Espíritos sentem, percebem ou usam os fluidos. Kardec afirmou (item 3 do cap. XIV da GE):

“Tudo sendo relativo, esses fluidos têm para os Espíritos - que também são fluídicos - uma aparência tão material quanto a dos objetos tangíveis para os encarnados, sendo para eles o que são para nós as substâncias do mundo terrestre. Eles os elaboram, os combinam para produzir determinados efeitos, assim como os homens fazem com os seus materiais, embora por processos diferentes.” (Grifos em negrito, nossos).

Da transcrição acima, dois conceitos importantes podem ser destacados: a) para os Espíritos, os fluidos tem aparência material, semelhante às nossas substâncias e objetos; e b) são os Espíritos que os elaboram ou os combinam para produzir determinados efeitos. A letra b) representa um dos fundamentos dos mecanismos da mediunidade como veremos mais adiante. Em outras palavras, a mediunidade vai depender de algum tipo de combinação de fluidos para ocorrer. Entenderemos isso até o final do artigo.

Precisamos entender o que a Doutrina Espírita ensina sobre como os Espíritos podem “elaborar” ou “combinar” fluidos para produzir ou realizar algum fenômeno. Kardec explica isso no item 14 do capítulo XIV de GE:

“Os Espíritos agem sobre os fluidos espirituais, não os manipulando como os homens manipulam os gases, mas com a ajuda do pensamento e da vontade. O pensamento e a vontade são para os Espíritos o que a mão é para o homem. Pelo pensamento, eles imprimem aos fluidos espirituais esta ou aquela direção; eles os aglomeram, combinam ou dispersam; com eles formam conjuntos tendo uma aparência, uma forma e uma cor determinadas; mudam as suas propriedades, como um químico muda a dos gases ou de outras substâncias, combinando-as segundo certas leis. É a grande oficina ou laboratório da vida espiritual.” (Grifos em negrito, nossos).

O entendimento do processo, agora, se torna mais claro. Não tendo corpo físico material, os Espíritos não podem agir sobre os fluidos da mesma forma que encarnados agem sobre a matéria. Os Espíritos agem sobre os fluidos através do pensamento e da vontade. Ou, em termos simples, pensando e tendo vontade. Esse é um dos princípios mais importantes do Espiritismo! O pensamento e a vontade são atributos que todo Espírito tem, com e/ou através dos quais é capaz de modificar o FU presente ao nosso redor, gerando neles forma, cor e, mais importante, qualidades associadas à qualidade do pensamento. Se um pensamento é bom, os fluidos ao redor do Espírito se modificarão de acordo e de modo a adquirirem qualidades boas. Se um pensamento é mau, os fluidos ao redor do Espírito se modificarão de modo a adquirirem qualidades más (ver item 15 do cap. XIV de GE). Essas modificações podem ocorrer por intenção ou por pensamentos inconscientes, e ocorrem de modo até mesmo instantâneo, isto é, basta pensar e/ou sentir, que o FU ao redor do Espírito, encarnado ou desencarnado, se modifica e adquire as qualidades do pensamento (ver item 14 do cap. XIV de GE).

 

[1] Considero que o Espiritismo ou Doutrina Espírita seja uma teoria ou doutrina cujo conteúdo está presente nas obras de Allan Kardec (não apenas as cinco obras consideradas fundamentais). Embora aprecie a qualidade doutrinária de outras obras espíritas, consideradas subsidiárias, não as incluo como formando os fundamentos da Doutrina Espírita por não terem sido obtidas através dos métodos empregados de Kardec, por não terem o duplo caráter de uma revelação (vide capítulo I de A Gênese). 

[2] A palavra “espírito” com “e” minúsculo serve para designar o elemento inteligente do Universo. Veja questões 23, 23a e 76 do LE.

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita