Correio mediúnico

Espírito: Irmão X

 

O cultivador infiel


— Não me conformo — repetia irritado o Dr. Novais Magalhães — o Espiritismo popular é vespeiro de confusão. Onde já se viu tamanha bagagem de embustes? É verdadeira escola de loucos e, frequentemente, não se compreende tão elevado número de débeis mentais.

— Mas, doutor — ponderava o Matos Lessa — há observações interessantes que cumpre não desprezar: Nem tudo é caso grosseiro ou indigno de análise. Claro que no intercâmbio com o invisível há que destacar deficiências mediúnicas. Se alguém se incumbe de um recado nosso, logicamente misturará suas expressões individuais no esforço de transmissão necessária. É o caso do médium. Se um político ou um cientista, distantes do lar ou do trabalho, apenas encontrassem humilde carregador capacitado à transmissão de uma mensagem à família ou aos colegas, naturalmente não sacrificariam o objetivo essencial ao processo exterior do serviço. É razoável que o portador satisfaça ao encargo, todavia, emprestando à colaboração característicos que lhe sejam peculiares. O dever, entretanto, estará cumprido, os detalhes, por certo, na maioria das vezes, deixarão a desejar.

— Não concordo, porém — reafirma o doutor. — A observação justa não dispensa o método rigoroso. A meu ver, a sobrevivência está muito longe de ser provada, através das supostas comunicações com o Além. Temos somente apreciável acervo de fenômenos da própria subconsciência. As mensagens nunca ultrapassam a esfera de cultura do médium, os efeitos físicos são perfeitamente explicáveis pelo conhecimento do magnetismo em nossa época. Nada observo que transcenda o paralelismo psicofisiológico da ciência oficial.

Continuava a discussão acalorada, cheia de persuasão por parte do Lessa e de argumentos pesados do rigoroso investigador.

O Dr. Magalhães, entretanto, jamais cedia terreno. Sua mente de pesquisador vivia repleta de conceitos clássicos a derramarem-se-lhe da boca em terminologia científica. Não apenas Matos Lessa vivia a duelar verbalmente com ele. Amigos vários tentavam inutilmente renovar-lhe as interpretações. Novais era, porém, irredutível. Exibia chaves da ciência comum para todos os casos da fenomenologia. De qualquer reunião respeitável a que comparecia, instado pelos companheiros, retirava-se mostrando sorriso irônico e invariável ao canto dos lábios.

— Não observou aquela mensagem dirigida à senhora Castanheira? — indagava o Morais, velho amigo dele. O médium desconhecia as particularidades da comunicação. Notou os nomes familiares? E a descrição da moléstia do filho? Como interpretará você o fenômeno, sem o concurso do Espiritismo?

Sorria o observador renitente, acentuando:

— Simples transmissão telepática. Nada mais que isto. A ansiedade da família Castanheira envolveu a organização mediúnica e produziram-se as páginas de conselho. Ora, ora, o cérebro humano é aparelho que mal conhecemos…

— Mas, meu amigo — atalhava o outro — semelhante conclusão não satisfaz. Além disto, outros casos existem mais surpreendentes.

E Morais desfiava longo rosário de narrações, enquanto o doutor Magalhães se desfazia em comentários sobre automatismo, mecanicismo, subconsciência, patologia, telepatia, criptomnésia, telecinesia, psicogênese e outras teses respeitáveis do metapsiquismo contemporâneo.

Ao fim da longa conversação, o investigador rematava:

— Afinal de contas, não me farei ao mar da ilusão. Quero fatos tangíveis, expressões palpáveis. O Espiritismo popular com os seus doutrinadores ignorantes e médiuns embusteiros não atrai estudiosos de valor intelectual. Sou honesto, meu caro, e o homem honesto deve ser verdadeiro.

— Não somos menos leais — aduzia o companheiro serenamente — e não desrespeitamos os postulados científicos. No entanto — e acentuava com inflexão firme — será admissível que a simples enunciação de palavras complicadas resolva problemas grandiosos da existência humana? A teoria não realiza coisa alguma por si só. Você, meu caro Magalhães, pode ser excelente educador, na expressão verbal, mas não é irmão.

— Que pretendes dizer? — perguntou Novais agastado.

— O educador explica, retalha, demonstra friamente e, por vezes, não vai além da lição teórica. O irmão é companheiro de luta, partilha as dores e alegrias do trabalho, compreende e consola.

— Alto lá! Não confundamos ciência e fé religiosa, raciocínio e sentimentalidade. A lógica não toma apartamentos ao coração. Sigamos pelo método. Não tolero as farsas mediúnicas, com as velhas exortações descabidas e indigestas.

E toda argumentação tornava-se inútil. Por mais que se lhe falasse de voos sublimes à Espiritualidade Superior, Novais fixava olhos e pensamentos no chão duro das interpretações sem esperança. Ninguém lhe discutia a honestidade, nem lhe negava inteligência. Mas a sua atitude mental era sempre irritante. Onde o amor dos Espíritos benevolentes e sábios semeava consolações e energia novas, atirava ele dúvidas e desencantos.

Semelhava-se ao jardineiro infiel que, ao em vez de auxiliar a planta e protegê-la, arranca-a da base vital, no intuito de contar-lhe as folhas, observar-lhe a seiva e analisar-lhe as raízes, muito antes da promessa de fruto.

Mas, como toda criatura terrestre, o doutor Novais Magalhães também entregou o corpo às exigências da morte. Com grande surpresa, porém, verificou que continuava vivo como dantes. Grande ansiedade por esclarecimentos particulares, enorme sede espiritual de revelação; entretanto, a solidão era absoluta. Ninguém para atender-lhe a fome do coração. Novais começou a caminhar a esmo, ponderando agora as barreiras sensoriais.

Ah! se encontrasse um médium! Alguém que lhe pudesse levar pequeno recado à família, humilde notícia aos colegas! Ainda que esse médium fosse de vulgar instrução, aproveitar-lhe-ia o concurso sem hesitar… E se algum Espírito amigo viesse encaminhá-lo a serviços novos? No entanto, o Dr. Magalhães não podia esperar colheitas onde nada havia semeado, no capítulo da fraternidade e da consolação.

O que mais o assombrava, porém, eram as sendas por onde se dirigia ansioso. Apenas divisava árvores mortas, ervas ressequidas, arbustos quebrados e, de quando a quando, a voz de alguém que se mantinha invisível lhe gritava, ironicamente, aos ouvidos: “Mau jardineiro! Mau jardineiro! Cultivador infiel!…”

Novais, que começara indagando, vivia, agora, entre a súplica e a lágrima.

Após muitos anos de dor, surgiu, enfim, alguém, na paisagem desolada. Tratava-se também dum jardineiro. O antigo observador fitou-o surpreso. Era um velhinho de olhar muito doce, cabeça aureolada de fios de neve, empunhando instrumentos agrícolas.

Magalhães aproximou-se e lhe pediu socorro, angustiadamente. Face às amorosas interpelações do velho amigo, relatou a própria história, narrando-lhe as indagações do passado e as desilusões a que fora conduzido, afirmando sua honestidade e dedicação extrema ao método.

O ancião sorriu generoso e falou:

— Quando na Terra, conheceu a formiga?

— Sim… — respondeu Novais, estranhando a pergunta.

— Pois é, meu amigo, o seu caso é semelhante ao dela. A formiga é um prodígio de inteligência e organização. Edifica o próprio lar, trabalha metodicamente, preserva com rigor o patrimônio que a Natureza lhe confere. É minuciosa, mas é também um assombro de operosidade e de método; mas… nunca olha para o alto e, enquanto vive no campo, é sempre a mesma formiga…

Magalhães compreendeu a alusão e chorou com amargura; mas, o amorável mensageiro tomou-lhe a destra e murmurou com brandura:

— Venha comigo. Aprenderá doravante a zelar as plantas de Deus. Compreenderá agora que, se a investigação é justa, a verdade palpita acima dela, pedindo compreensão para as bênçãos da vida. Esqueça a sombra e busquemos a luz. Se a ciência é necessária para o aprendizado de caminhos da Terra, é preciso não esquecer que o amor traça os caminhos do Céu.

 

Do livro Histórias e anotações, obra psicografada pelo médium Francisco Cândido Xavier.

 

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita