Artigos

por Eurípedes Kühl

 

O Novo Testamento: notas históricas

 

O Novo Testamento compreende os quatro Evangelhos (Mateus, Marcos, Lucas e João), os Atos dos Apóstolos, as Epístolas de São Paulo, São Tiago, São Pedro, São João e São Judas – e o Apocalipse, de São João.

Todos os Evangelhos foram escritos muitos anos após a morte de Jesus. Dos evangelistas, é tido como verdadeiro o que foi escrito por João e Mateus, que conheceram o Cristo pessoalmente. O Evangelho de Lucas provavelmente foi escrito por volta de 50 a 65 d.C.. O Evangelho de Marcos é tido como o mais antigo: data do ano 70 da nossa era, mas Emmanuel informa, no livro Paulo e Estêvão, que Marcos era ainda adolescente quando já circulavam e eram copiadas as anotações de Levi, como era conhecido o apóstolo Mateus.

Os textos foram reunidos com base em narrações orais, feitas por outras pessoas. Justificadas são, pois, as dúvidas existentes quanto à autoria evangélica de algumas frases de Jesus.

Eis um exemplo registrado em Marcos: “os sãos não precisam de médico, e, sim, os doentes” (2: 17). Ocorre que esse mesmo provérbio é encontrado em textos dos escritores gregos Diógenes Laercio (séc. III d.C.) e Plutarco (séc. I d.C.).

Difícil identificar o autor, dentre os três.

Os textos bíblicos que temos às mãos foram declarados como versão oficial da Igreja Romana pelo Concílio de Trento, em 1546.

Na verdade, foi Jerônimo (347-419 ou 420), pa­dre e doutor da Igreja, que, atendendo a um pedido do Papa Dâmaso, em 382, iniciou a revisão do texto latino da Bíblia. Ante as incontáveis controvérsias teológicas surgidas para o Novo Testamento, Jerônimo abandonou o texto latino existente (a Vetus Latina) e realizou uma nova tradução. Para o Antigo Testamento, o monge decidiu traduzi-lo diretamente do hebraico, com exceção dos Salmos, dos quais fez duas diferentes revisões do texto da Vetus Latina.

Jerônimo confessou que corrigiu e modificou os textos antigos. Essa tarefa teria demandado a Jerônimo quarenta sofridos anos.

Léon Denis (1846-1927), em sua obra Cristianismo e Espiritismo[1], consigna que Jerônimo sentiu-se extremamente dificultado para escolher, dentre tantos textos, quais os mais sensatos.

Consta que Jerônimo ter-se-ia recolhido num mosteiro de Belém, para realizar a sagrada tarefa de “reconhecer”, dentre as cerca de quarenta versões evangélicas existentes, quais as autênticas.

Léon Denis transcreve as palavras de Jerônimo ao Papa Dâmaso:

“Da velha obra me obrigais a fazer obra nova. Quereis que, de alguma sorte, me coloque como árbitro entre os exemplares das Escrituras que estão dispersos por todo o mundo, e, como diferem entre si, que eu distinga os que estão de acordo com o verdadeiro texto grego. É um piedoso trabalho, mas é também um perigoso arrojo, da parte de quem deve ser por todos julgado, julgar ele mesmo os outros, querer mudar a língua de um velho e conduzir à infância o mundo já envelhecido”.

Após outras considerações, conclui Jerônimo:

“Depois de haver comparado certo número de exemplares gregos, mas dos antigos, que se não afastam muito da versão itálica, combinamo-los de tal modo (ita calamo temperavimus) que, corrigindo unicamente o que nos parecia alterar o sentido, conservamos o resto tal qual estava”. [2]

Após essa tradução oficial, por volta do ano 386, o texto sofreu novas alterações no Concílio Ecumênico de Trento, em 1546. Em 1590, porém, foi o texto considerado insuficiente e errôneo pelo Papa Sixto V, que ordenou nova revisão. A edição que daí resultou, igualmente foi modificada por Clemente VIII (Papa de 1592 a 1605), sendo essa a que atualmente conhecemos. Mas, por causa das várias traduções a que vem sendo submetida, tem seu texto da mesma forma sido alterado em alguns pontos.

Em Jesus e sua Doutrina, editado em 1934 pela Federação Espírita Brasileira, A. Leterre, num monumental trabalho de pesquisa sobre as consequências da presença de Jesus encarnado, narra sobre a veracidade dos Evangelhos: No Concílio de Niceia, 318 bispos e arcebispos não haviam conseguido, ao cabo de alguns anos de acaloradas discussões, em que ferviam epítetos insultuosos, chegar a um acordo pelas incoerências e contradições verificadas naqueles escritos (30 alfarrábios e muitos outros apócrifos).

Em consequência, o Papa resolveu o seguinte:

“Colocar-se-iam debaixo do altar todos aqueles alfarrábios, o Cenáculo se concentraria (como nas sessões espíritas), invocar-se-ia o Espírito do próprio Cristo, e se lhe pediria indicar, por um milagre, qual ou quais daqueles livros deveriam ser considerados verdadeiros”.

Assim foi feito. Os livros foram atirados para baixo do altar, a invocação se fez, e após um tempo mais ou menos longo apareceram sobre o altar os quatro livros que hoje servem de colunas sustentatórias da tiara do Papa: os de Mateus, Marcos, Lucas e João.

Antônio Lima, em Vida de Jesus, 1ª Ed., 1939, FEB, RJ/RJ, comenta sobre tal fato que ele não poderia ser tido à conta de fiel, pois nos Concílios de Niceia (anos de 325, 326 e 787) o tema não foi tratado.

Seja como for, a tarefa de que se desincumbiu São Jerônimo leva-nos à certeza de que não estava só. Mensageiros do Cristo, talvez sob inspiração d’Ele, acompanharam o paciente religioso, para que as sublimidades do Mestre não se perdessem, antes, ficassem registradas para o porvir.

Não será demais, também, conjecturarmos que o Papa Dâmaso esteve sob luminosa inspiração, ao preocupar-se com a separação do joio e do trigo, ante tantas versões do ensinamento cristão que eram insistentemente expostas aos fiéis.

De qualquer forma, temos que, após o meticuloso trabalho de São Jerônimo, a nova tradução dos textos sagrados foi denominada Vulgata (do latim vulgatus = popu­lar, divulgado). O primeiro grande livro impresso em Mainz/Alemanha por Gutenberg, em 1456, foi a Vulgata.

Os textos evangélicos do Novo Testamento são compostos de cinco partes: atos comuns da vida de Jesus; os milagres; as profecias; as palavras sobre as quais se formaram os dogmas da Igreja, e o ensinamento moral.

Para o Espiritismo, contudo, apenas a quinta parte é o que importa nos Evangelhos, pela mensagem moral nela contida, trazida por Jesus.

Com efeito, somente a quinta parte, relativa à moral cristã, manteve-se una, indivisível, inatacável – em todos os textos, de todos os evangelistas, e assim chegou até nós, com o mesmo sentido, em todas as religiões cristãs.

Por isso, a moral cristã é a bandeira sob a qual todos os povos podem  unir-se e se abrigar, amando-se uns aos outros, sendo felizes todos.

Allan Kardec, ao elaborar O Evangelho segundo o Espiritismo (1864), teve o cuidado de utilizar apenas essa parte do Novo Testamento.

É tão fulgurante a palavra de Jesus, são tão sublimes seus exemplos, sobre os quais há unanimidade narrativa, que nos diz a razão que os textos do Novo Testamento, apesar de todas as retificações, trazem em seu bojo a luz incomparável do Mestre.

De tamanha magnitude é essa luz que atravessa todas as brumas do pensamento, sobrevive a todas as revisões e projeta suas claridades através dos milênios, nada havendo, em todo o Universo, que a possa embaçar.[3]

 


[1] - Cristianismo e Espiritismo, Léon Denis, Cap. II (Autenticidade dos Evangelhos), p. 31-32, 9ª Ed., 1992, FEB.

[2] - Citação em Obras de São Jerônimo, Ed. Beneditinos, 1693, t. I, col. 1425 (constante da p. 32 do livro de Léon Denis, Cristianismo e Espiritismo, já citado).

[3] - Notas extraídas do meu livro Fragmentos da História pela ótica espírita, cap. 2 – Em e-book grátis, edição: EVOC.

 
 

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita