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por Ricardo Baesso de Oliveira

 

O sentimento de caridade


O conceito, relativamente recente, de comportamento pró-social, apresentado pela psicologia - as ações humanas que aumentam o bem-estar do próximo e da coletividade -, transcende a modernidade, e pode ser visto em autores muito antigos.

Relativamente aos textos bíblicos, Paulo, antecipando-se aos conceitos da psicologia social, se valeu da palavra grega ágape, para referir-se a um tipo de amor que transcende o amor romântico, o amor maternal e o amor entre amigos. Ágape se identifica como um tipo de amor incondicional, que nada espera em troca, que não se justifica, que é puro e espontâneo, capaz de amar até mesmo os inimigos.

Vulgata, que traduziu a Bíblia do grego para o latim, traduziu a palavra ágape pelo termo latino caritas, ou seja, o que é caro, de alto valor, digno apreço, e que chegou até nós pela palavra caridade.

Em nossos dias, a caridade perdeu, em grande parte, seu valor, pois vem sendo relacionada apenas à esmola, à filantropia - uma ação que, muitas vezes, promove a indolência e gera uma atitude de acomodação no beneficiado.

Allan Kardec se utilizou muitas vezes do termo caridade, mas dando a ele uma conotação muito mais profunda, ao relacioná-lo à bondade, à tolerância nas relações humanas e ao esquecimento das ofensas (O Livro dos Espíritos, item 886). Em artigo denominado Uma reconciliação pelo Espiritismo, publicado na Revista Espírita, setembro de 1862, Kardec colocou que a caridade resume todos os nobres impulsos da alma para com o próximo, apresentando-a como um continuum, que varia desde a simples esmola até o amor aos inimigos, que é o suprassumo da caridade.

Observamos que Kardec apresenta a caridade com um espectro, que varia conforme o mérito da ação, que se relaciona, obviamente, com a dificuldade em praticá-lo. Em um extremo do espectro Kardec coloca a simples esmola (que também é uma forma de caridade, embora de menor valor, porque, geralmente, custa-nos menos esforço: damos o que nos sobra). No outro extremo, Kardec coloca o amor aos inimigos, que considera o suprassumo da caridade, pois exige do envolvido uma grande dose de abnegação.

E, nesse texto, Kardec volta a se valer da expressão sentimento de caridade, já apresentada por ele em algumas passagens de O Evangelho segundo o Espiritismo (cap. 17, itens 2 e 3 e cap. 28, item 5) e em O Livro dos Espíritos, itens 717 e 918. No comentário ao item 717quando examinando a ação antissocial de indivíduos que açambarcam os bens da Terra, com prejuízo daqueles a quem falta o necessário, nosso codificador escreve que é o sentimento de caridade que leva os homens a se prestarem mútuo apoio. No item 918, por sua vez, Kardec, dissertando sobre as qualidades do verdadeiro homem de bem, escreve que, possuído do sentimento de caridade e de amor ao próximo, faz o bem pelo bem, sem contar com qualquer retribuição, e sacrifica seus interesses à justiça.

O que podemos entender por sentimento de caridade? Talvez Kardec se refira à vivência íntima do comportamento de ajuda, a interiorização da ação exterior e que dá significado profundo ao ato. Muitos de nós temos automatizado a ação caritativa, fazendo-a mecanicamente, sem enriquecê-la de um sentimento do belo, do nobre, do generoso. Sabemos que toda ação que beneficia alguém é meritória e credita o beneficiador, porque reduz o sofrimento alheio. Todavia, entendemos que só o comportamento de ajuda que se acompanha do sentimento de caridade representa crescimento espiritual real, ou seja, que ilumina de dentro para fora aquele que o pratica.

Sob esse aspecto, o sentimento de caridade pode ser entendido como a boa vontade permanente, o desejo incessante de ser útil, um estado íntimo de encantamento ante a possibilidade de efetivação do comportamento de ajuda, o estado de graça ante a experiência do bom e do útil.

Kardec conclui o artigo afirmando que um dos resultados do Espiritismo bem compreendido é desenvolver o sentimento de caridade e que, quando todos nós estivermos imbuídos desse belo e nobre sentimento, viveremos em permanente harmonia com o nosso próximo e que, se dois indivíduos podem viver em boa harmonia, o maior número também o pode. E, então, serão tão felizes quanto é possível sê-lo na Terra.

 
 

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita