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por Pedro Simões

 

Assistência social em quatro perspectivas


A assistência social é uma prática recorrente nos centros espíritas no Brasil. Estimativas, a partir do estado de Santa Catarina, indicam que praticamente 80% das instituições espíritas promovem algum tipo de trabalho assistencial (Simões, 2015). Os mais simples se resumem à entrega de roupas e alimentos à população assistida ou à entrega de enxovais às gestantes em centros que, as mais das vezes, não dispõem de um “departamento de assistência social”. Os mais estruturados, por outro lado, além da entrega de donativos, ainda prestam serviços à população, agregam formas de evangelização, evangelho no lar, trabalhos de convivência, entre outros.

A partir destas experiências quero apresentar aqui três perspectivas de assistência social que fazem parte do ideário espírita, além de sugerir uma quarta. Com isso, não se quer afirmar aqui que existam umas mais corretas que outras, mas tão somente que elas são possíveis dentro de leituras e entendimentos diversos da codificação. As quatro podem ser assim denominadas: assistência social espírita; espaço de convivência; assistência social realizada por espíritas; e caridade. Vejamos cada uma delas resumidamente.

A concepção de assistência social espírita é, sem dúvida, a mais recorrente nas práticas espíritas. Essa perspectiva é derivada da observação das práticas desenvolvidas pelos espíritas. Ela parte da concepção baseada no lema “Fora da Caridade não há Salvação”. Nela há uma centralidade no trabalhador espírita que tem o trabalho assistencial como um “dever moral” e que emprega todos seus esforços para atender à população assistida em suas necessidades, de acordo com os seus próprios valores [do trabalhador]. Esse atendimento aos assistidos, em geral, não é visto somente como material, mas também espiritual. Por isso, trata-se de uma “assistência social espírita”, ou seja, a forma de fazer assistência agrega, necessariamente, valores e concepções espíritas que, de algum modo, devem ser passados aos assistidos como forma de atendimento de suas necessidades espirituais. O fundamento dessa perspectiva são a Parábola do Bom Samaritano e a do Semeador.

espaço de convivência é uma metodologia inspirada nas ideias de Mario Barbosa e desenvolvidas no livro Conviver para Amar e Servir(Sarmento, Pontes e Perolin, 2013). Inicialmente, a metodologia foi pensada para evangelização. Ela pressupõe a construção de um espaço de diálogo, de partilha com o outro, de encontro, de modo a que se estabeleça um vínculo, uma proximidade entre educador-educando. É nesse espaço que se pode transmitir aos educandos valores e conhecimentos, a partir daquilo que eles tragam de suas vivências. Nesse processo, ambos aprendem e crescem conjuntamente. Seu fundamento está, sobretudo, na passagem do capítulo XVI, item 11, Emprego da Riqueza, de O Evangelho segundo o Espiritismo (ESE): “Alivia, primeiro; em seguida, informa-te, e vê se o trabalho, os conselhos, mesmo a afeição não serão mais eficazes do que a tua esmola”. Dessa forma, a proposta do espaço de convivência busca criar espaços de trabalho, de atividade lúdica, de conversa (como as rodas de conversa), que aproximem assistente-assistido, diminuindo a distância entre eles. Sua base também é a Parábola do Samaritano.

Por outro lado, essa proposta não se distingue muito da anterior, já que ela permanece sendo uma  “assistência social espírita”, ou seja, ela também reforça a ideia de que, através desses espaços, o assistente terá a oportunidade de caminhar com o assistido e de lhe mostrar “quem é o Cristo”. Assim, há centros que se utilizam da metodologia dos espaços de convivência no trabalho de doação de alimentos, de artesanato, no trabalho com pessoas em situação de rua, entre outros, de modo a viabilizar um meio de transmissão dos valores e concepções espíritas aos assistidos. O que não significa, necessariamente, uma imposição do Espiritismo, mas a manutenção de um pressuposto espírita na abordagem e naquilo que é repassado ao assistido.

A perspectiva da assistência social realizada por espíritas rompe com as duas perspectivas anteriores. Ela pressupõe que a assistência social é uma atividade que exige qualificação profissional. Desse modo, ela requer trabalhadores com expertise na atuação social que entendam o que são as políticas assistenciais, as formas de atuação em rede, a formação da rede socioassistencial públicas e privada, entre outras. Portanto, a assistência não seria um espaço para boa vontade ou para transmissão de valores religiosos, mas de atendimento às necessidades da população, ou seja, de cidadania. Para esta perspectiva, a associação entre assistência e religião é uma forma de assistencialismo que dificulta o reconhecimento dos trabalhos realizados pelos espíritas por parte de outras instituições. A associação mencionada termina sendo compreendida como uma forma de atuação confessional pelas outras instituições e, principalmente, pelo estado.

Assim, nesta perspectiva, a assistência social deve ser laica, sem pretensão de transmissão de valores e concepções religiosos. Os espíritas podem também fazer assistência, se esta forma for direcionada por profissionais que integrem o trabalho assistencial realizado na instituição espírita com a rede socioassistencial.

Essa concepção não é menos espírita que as demais. Mas ela compreende a necessidade de qualificação do trabalho assistencial, que se igualaria ao trabalho médico ou o de um advogado, ou seja, exigindo competência para tal, e considera que não é a “transmissão do Espiritismo” ao assistido que torna a prática assistencial espírita, mas o atender qualificado de sua demanda. É nesse sentido que a concepção de que não é “fora da Igreja” [ou Espiritismo] que não há salvação, mas é “da caridade”, neste caso, do atendimento assistencial que ganha sentido. Essa perspectiva foi identificada na proposta apresentada por Losangelis Gregório, diretora de assistência social da Federação Espírita do Distrito Federal. Aqui foi retratado o meu entendimento desta perspectiva, não tendo a referida trabalhadora qualquer responsabilidade sobre o que foi aqui apontado.

Por fim, a perspectiva da caridade. Ela se distingue também com todas as demais. Ela endossa a anterior, mas entende, ao mesmo tempo, que não há uma perspectiva assistencial do Espiritismo, mas da caridade. O fundamento dessa abordagem está na questão 888 de O Livro dos Espíritos (LE), onde se encontra: “[uma sociedade que se baseia na Lei de Deus] deve assegurar a existência dos que não podem trabalhar, sem lhes deixar a vida à mercê do acaso e da boa vontade de alguns”.

Nas duas primeiras perspectivas apresentadas, a assistência está ainda baseada na boa vontade dos espíritas que compreendem a ação assistencial como um “dever moral”, como dito anteriormente. Portanto, considerando essa questão, seria necessário superar este modo de assistir.

Além disso, na questão 888a da mesma obra, há a indicação que o problema não está em “dar a esmola”, mas na “maneira por que habitualmente é dada”. Essa maneira coloca o assistido em uma posição de inferioridade que o humilha, pois o institui como incapaz socialmente e moralmente (precisando de assistência e conselhos religiosos). Para se contrapor a essas formas de assistir há duas possibilidades não excludentes: a primeira é que afirma a assistência como um direito social e está representada na perspectiva da “assistência social realizada pelos espíritas”. No entanto, esta não é uma proposta religiosa, cristã ou espírita, mas secular. Em última instância ela pode conter um sentido religioso, mas sua prática não o é. 

A segunda é a caridade, expressa como alternativa à “esmola”, na mesma questão 888a: “o homem de bem, que compreende a caridade de acordo com Jesus, vai ao encontro do desgraçado, sem esperar que este lhe estenda a mão”. É na questão 886 (LE) que a caridade, “de acordo com Jesus”, ou, “como a entendia Jesus” é definida como “perdão das ofensas”. Embora a esmola e o perdão pareçam temas distantes, na nota de Kardec a esta pergunta, o codificador aproxima as temáticas afirmando: “o homem verdadeiramente bom procura elevar, aos seus próprios olhos, aquele que lhe é inferior, diminuindo a distância que os separa”.

Esta assertiva pode ser complementada com a passagem, contida no capítulo XIII de ESE, item 3, quando encontramos: “a verdadeira generosidade adquire toda a sublimidade, quando o benfeitor, invertendo os papéis, acha meios de figurar como beneficiado diante daquele a quem presta serviço”. Portanto, a caridade é uma forma de relacionar-se com o outro que, não só “eleva aquele que lhe é inferior”, mas também inverte a relação entre benfeitor (assistente) - beneficiado (assistido). Assim, aquele que ajudaria é o que se torna ajudado, invertendo as posições.

A questão 888a (LE) ainda se reporta aos conceitos do “fazer o bem sem ostentação” (ESE, XIII, 1), do “infortúnio oculto” (ESE, XIII, 4), e do óbolo da viúva (ESE, XIII, 5). Portanto, é nestas referências que se deve buscar compreender a forma de fazer caridade.

Além da inversão de papéis, há ainda outro elemento na caridade: não há nenhuma referência nas passagens de Jesus à indicação de que o “assistir o outro” incluiria uma atitude de evangelização ou de esclarecimento moral. Não existe sequer diálogo entre o homem caído e o samaritano, assim também na parábola dos “Bodes e das Ovelhas”. Na mensagem referente aos “infortúnios ocultos”, quando se menciona a atitude da mulher rica, encontra-se a seguinte passagem: “à noite, um concerto de bênçãos se eleva em seu favor ao Pai celestial: católicos, judeus, protestantes, todos a bendizem”. Portanto, está claro que ela esteve com eles sem qualquer propósito de alterar suas crenças particulares.

A partir dessas referências, elimina-se a ideia da assistência que contém a concepção de um assistente que detém algo a ser passado ou transmitido ao assistido, independente se se trata de assistência material, moral ou religiosa. Retira-se também o vínculo religioso atribuído a essas práticas.

O desafio, então, é pensar o que fazer nesta nova perspectiva. Uma proposta, que se aproxima dos ideais de uma “economia solidária”, encontra-se na proposta apresentada por Paulo de Tarso a Pedro diante das contingências e dificuldades enfrentadas pela Casa do Caminho (Souza, 2019). Complementando a plantação de subsistência que Pedro já havia estabelecido lá, Paulo propõe algo maior:

Os órfãos, os velhos e os homens aproveitáveis poderão encontrar atividades além dos trabalhos agrícolas e produzir alguma coisa para a renda indispensável. Cada qual trabalharia de conformidade com as próprias forças, sob a direção dos irmãos mais experimentados. A produção do serviço garantiria a manutenção geral. Como sabemos, onde há trabalho, há riqueza, e onde há cooperação, há paz.

Será que um dia conseguiremos tirar aqueles que chegam à casa espírita com dificuldades materiais da posição de assistidos? Será que conseguiremos não impor mais nossas crenças àqueles que vêm à instituição espírita na busca do pão e que já possuem suas próprias fés? Será que conseguiremos retirar os “assistidos” da posição de dependentes e garantirmos a eles trabalho útil, que assegure o que eles necessitem, sem que precisem humilhar-se? A proposta de Paulo é ainda hoje desafiadora para todos nós.


Referências
:

Kardec, A. O Livro dos Espíritos, várias edições.

Kardec, A. O Evangelho segundo o Espiritismo, várias edições.

Sarmento, H. B., Pontes, R. N. e Parolin, S. R. Conviver para Amar e Servir. Brasília: Feb, 2013.

Simões, P. Dá-me de Comer. São Paulo: CCDPE-ECM / LIHPE, 2015.

Souza, A. R. “A economia solidária no principal livro oriundo de Chico Xavier”. In. Simões, P. e Souza, A. R. As dimensões institucionais e assistenciais do Espiritismo. Curitiba: Appris, 2019. [No prelo].

Xavier, F. C. Paulo e Estêvão. Brasília: FEB, 2010. [pelo espírito Emmanuel].
 


 
 

     
     

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