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por Diamantino Lourenço Rodrigues de Bártolo

 
Ética Geral

É importante iniciar esta reflexão, com um significado, entre muitos outros, de Ética: «Ética, como um conceito, diferencia-se da moral, pois, enquanto esta se fundamenta na obediência a costumes e hábitos recebidos, a ética, ao contrário, busca fundamentar as ações morais exclusivamente pela razão.[ A ética também não deve ser confundida com a lei, embora com certa frequência a lei tenha como base princípios éticos. Ao contrário do que ocorre com a lei, nenhum indivíduo pode ser compelido, pelo Estado ou por outros indivíduos, a cumprir as normas éticas, nem sofrer qualquer sanção pela desobediência a estas; por outro lado, a lei pode ser omissa quanto a questões abrangidas no escopo da ética»
(in:https://pt.wikipedia.org).

Exprime, ainda, modo habitual de agir, caráter. Ética e moral são, então, depois da etimologia, de acepção equivalente, e isto porque, sob a sua forma substantiva feminina, estas palavras são, muitas vezes, tomadas uma pela outra.

Diz-se, indiferentemente, a Ética ou a Moral para designar o que nós podemos, provisoriamente, definir como: “Ciência ou Filosofia da Ação Humana”. Nos nossos dias, no entanto, nós vemos muito, sobretudo no mundo anglo-saxônico, introduzirem entre os dois termos uma distinção.

Pode-se crer que, falando-se de Ética, subentende-se o substantivo Ciência ou Filosofia. Historicamente, isto será falso, porque Ética, através do latim Éthica, liga-se ao plural neutro, o que concerne aos costumes que Aristóteles (ou o seu editor) deu como título às suas duas grandes obras morais: “Ética a Eudeme” e “Ética a Nicômaco”.

O equivalente em latim seria “Morália” (título dado por S. Gregório, o Grande, aos seus célebres comentários sobre o livro de Job). Transcrita em latim, a palavra Ética, como as palavras física, metafísica, política, têm primeiro conservado o seu valor de plural, para, depois, ter sido analisada como um feminino e é como feminino que deu o francês “Éthique”.

Igualmente, pode-se tomar que, em Ciência ou Filosofia da Ação Humana, a palavra ação deve tomar-se no seu sentido estrito correspondente ao aristoteliano, enquanto que distinto, por sua vez da especulação e do fazer (atividade artística e técnica, produção do objeto, transformação do meio).

O que compete do ponto de vista da arte, ou da técnica, é que a obra seja bem executada: que a estátua seja bela, que a mesa tenha por baixo os pés, que o avião voe. O agente e o seu ato não têm interesse relativamente à obra. É a eles, ao contrário, e mais precisamente ao agente, considerado através do seu ato, que a Ética se interessa em primeiro lugar.

Apoiando-nos na etimologia, poderíamos, então, e desde já, chamar (ciência) Ética ou Moral à simples descrição dos modos ou hábitos de agir: seja de homens em geral, seja de uma sociedade determinada. E, de fato, naqueles que nós olhamos como os grandes moralistas – Aristóteles, seu discípulo Teofrasto e o moderno imitador deste último, La Bruyère –, esta descrição tem um grande lugar. (Jean de La BRUYÈRE, 1645-1696, é um moralista francês. É famoso por uma única obra, dos personagens ou costumes do século - Les Caractères ou les Mœurs de ce siècle, 1688.)

Com o auxílio de métodos mais aperfeiçoados, e numa atitude de neutralidade que exclui todo o julgamento de valor, ele prosseguiu nos nossos dias sobre o plano da fenomenologia, da caraterologia, da sociologia, entre outros.

Mas a Ética deve apoiar-se assim? Certamente o pensam, mas exatamente à velha Ética, teórica e normativa que, segundo afirmam, não pode trazer uma certeza científica; eles queriam substituir uma ciência de hábitos que considerava o fato moral à maneira dos outros fatos sociais, descrevia os costumes, os julgamentos e sentimentos morais próprios, às diferentes sociedades e determinava as leis da sua aparição, do seu desenvolvimento, da sua evolução, o seu desaparecimento, como a ciência o faz para os fenômenos físicos, tal é a posição de LEVY-BRUHL na: “A Moral e a Ciência dos Hábitos”, Paris: 1903. (Lucien LÉVY-BRÜHL, 1857-1939, foi um estudioso francêsformado em Filosofia, que fez contribuições para os campos de brotamento da sociologia e da etnologia.)

Segundo este autor, falar de ciência normativa é contradizer-se. A ciência enuncia o que é, não o que deve ser. A ciência, por definição, não tem outra função que não seja conhecer o que é. Ela não é, e não pode ser o resultado da aplicação metódica do espírito humano, a uma porção, ou aspectos da realidade dada.

Ela aspira e tende para a descoberta das leis que regulam os fenômenos. Tais são as matemáticas, a astronomia, a física, a biologia, a filologia, entre outras. A moral teórica propõe-se a um objeto, essencialmente diferente. Ela é, por essência, legislativa. Ela não tem por função o conhecer, mas o prescrever. A Ética, assim compreendida, não pode, então, segundo Lévy-Brühl, ser uma ciência.

Por outro lado, muitos, hoje, entre as contínuas análises linguísticas, não querem ver na Ética, ou na Filosofia Moral, senão uma lógica do discurso moral. São listas a reduzir, a definir os termos ou conceitos morais (bem, mal, justo, direito, dever), a determinar as suas relações, seja entre aqueles, seja com os termos ou conceitos não morais, a codificar as regras do seu uso correto, distinguindo os casos onde eles conservam a sua significação, propriamente moral, daqueles onde eles não têm senão uma significação não moral, ou nenhuma significação do todo.

Uma Ética, assim entendida, nada pode prescrever dum modo absoluto, mas somente mostrar que tal prescrição particular é coerente, ou não, com os princípios ou valores de base, reconhecidos pelo indivíduo. Mas depende de cada um escolher tal sistema de valores, de preferência a tal outro e, sobre esta escolha, a Filosofia Moral nada tem a dizer.

O caráter normativo, prático, no pleno sentido da palavra, de suas conclusões. A Ética é normativa, não como a lógica pelo que olha de bom pelo funcionamento do pensamento, mas pelo que olha de bom andamento da vida, a orientação direita da existência.

Ela é uma ciência prática, não somente porque ela trata da práxis humana, mas porque ela visa a dirigi-la. Não basta aos moralistas descrever os hábitos, ou costumes: eles os entendem, os julgam e os retificam. Eles propõem as regras, os avisos, os conselhos, os preceitos para mostrar aos homens o caminho do “Bem Viver” e os comprometer. Mas isto pode-se entender de dois modos:

a) Pode-se pensar numa arte de viver, numa técnica da felicidade (individual ou social). Tal é, “grosso modo”, a concepção antiga da Filosofia Moral, toda orientada para o soberano bem, cuja possessão conduza o homem à felicidade.

Que seja uma técnica da felicidade, é admitido por ela mesma, que definissem de outra maneira a Filosofia Moral. Assim Lévy-Brühl vai na ciência dos costumes, o fundamento sobre o qual poderá, um dia, constituir-se uma arte moral, capaz de indicar o que é preciso fazer para assegurar a saúde, e o melhor ser da sociedade. E estes, que não veem na Ética senão uma espécie de lógica, são os primeiros a proclamarem a sua utilidade, para a solução dos problemas da vida;

b) Mas a ciência do “Bem Viver” pode ser, igualmente, compreendida como a ciência que convém ao Homem: “Bem Viver”, neste caso, não significa viver feliz, mas viver como é preciso. Vivendo bem, o Homem merece a estima, o louvor, a aprovação; vivendo mal, fazendo o que não convém, ele merece a censura.

Uma tal Ética não dirá: “Age de tal modo se queres ser feliz (ou, pois que tu podes ser feliz), mas age de tal maneira se queres viver como homem (e tu deves viver como homem)".

Esta concepção da moral não era desconhecida dos antigos. Platão, Aristóteles, os estoicos falavam várias vezes do que convinha ou não convinha ao homem, das condutas conformes ou contrárias à razão, do que é preciso fazer ou evitar. Devemos reconhecer sempre que a necessidade objetiva do bem e o dever de o realizar interessam menos aos pensadores, que são de caráter amável e desejável ao ponto de a Ética deles parecer, muitas vezes, tornar a uma estética da vida moral, confusão favorecida pela estreita afinidade, para a mentalidade helênica, noções de bom e de belo.

Pode dizer-se que no tempo dos antigos a obrigação era antes vivida como um dado da experiência ético religiosa, cientificamente desenvolvida. Ela fica, em geral, sob o plano da expressão popular, ou da interpretação mítica, e não intervém muito na sistematização racional da moral. Esta ideia, ao contrário, tem um grande lugar nas teorias elaboradas sobre a influência, direta ou não, do cristianismo e, em particular, na Ética Kantiana, donde é a noção-chave.

Estas duas concepções da moral não se excluem nem anulam. A priori, nada impede que uma vida conforme o ideal do homem seja, também, para ele, o caminho e o único caminho da felicidade, e de fato nos mostremos – reencontrando nesta afirmação espontânea a consciência comum – que isso é bem, assim, de forma que um dos dois aspectos da Ética não pode ser adequadamente do outro.

Verificaríamos, comodamente, isso considerando as grandes doutrinas morais. A dos escolásticos, por exemplo, e nomeadamente a de S. Tomás, que se apresenta ordinariamente como uma Ética da beatitude; mas ela inclui uma Ética de obrigação. E, por seu lado, a Ética Kantiana acaba por reintroduzir, como elemento de soberano bem, a ideia de felicidade.

Vemos que a definição de Ética, por pouco que ela queira sair das generalidades vagas, depende, parcialmente, menos da maneira como são abordados e resolvidos os problemas morais. Isto é dizer que a nossa própria definição não se justificará, plenamente, senão no desenvolvimento do nosso tratado.

De saída, ela está de qualquer maneira postulada. Admitamos, então, que a Ética seja uma ciência normativa das ações, e para lá da existência humana – normativa no segundo sentido, não do modo de uma arte de viver feliz, mas contanto que ela comporte uma regra válida para si, um dever propriamente dito, uma obrigação absoluta ou categórica (sem pretender, todavia, que esta obrigação seja elemento essencial da moralidade).

A Ética é a ciência do que o homem deve fazer para viver como ele deve viver; para ser o que ele deve vir a ser; para que ele atinja o seu valor supremo; para que ele realize, na sua natureza, o que se apresenta como a justificação da sua existência – o para que e por que ele existe. Em duas palavras, a Ética é uma ciência categoricamente normativa.

Numa Ética assim entendida, a matéria é mais determinada, mais restrita do que se procedesse simplesmente de uma descrição dos costumes, ou de uma técnica da vida feliz, segundo a nossa definição. Com efeito, a ação é considerada sob um aspecto mais subjetivo, ou melhor, pessoal. Como procedendo da vontade livre.

Este caráter não teria tanta importância no caso, por exemplo, duma arte de viver feliz, porque ele não está excluído dum ato posto sem advertência, sem decisão livre, e, colhido pelo seu conteúdo material, favorecer a felicidade e colocar obstáculos. Um sonâmbulo pode mordiscar-se, como pode também, por uma sugestão oportuna, executar uma ginástica salutar, para a qual a coragem lhe faltou no estado de velho, ou se desfez de um hábito nocivo à sua saúde.

Uma Ética da felicidade parece, então, à primeira vista, menos conciliável com a negação da liberdade; a história nos diz que este acordo verificou-se muitas vezes. Pela mesma razão uma Ética da felicidade se mostrará, por vezes, pouco susceptível, sob o respeito da autonomia pessoal.

Ela crera entregar aos homens um bom ofício, determinando-lhes o lugar nos caminhos da felicidade, e neles impelirem a força, se eles são bastante tolos para, de modo algum, se comprometerem eles mesmos. Lá, ao contrário, onde colocamos a obrigação, é preciso pousar, também, a liberdade, sem a qual aquela não tem sentido.

Por outras palavras, a Ética, tal como nós a entendemos, não considera os atos postos pelos homens, no entanto, eles procedem deles, lhes pertencem, que eles são sentidos dum modo qualquer, mas, todavia, que são postos por eles, segundo o modo de agir, próprio ao homem, e que o distinguem de todos os outros seres da nossa experiência, isto é o mesmo que dizer, com advertência e liberdade, como vamos ver, no entanto, eles são, no pleno sentido da palavra, atos humanos.

A nossa definição da filosofia moral, para ser completa, requer uma última precisão. Na maior parte dos homens as prescrições morais revestem, também, de um caráter religioso. Elas são consideradas como intimações da divindade. O seu conhecimento é, muitas vezes, atribuído a uma revelação divina.

No que respeita a filósofos, nós admitimos, sem hesitar, que uma tal comunicação é possível, muito mais, que ela é altamente desejável. No que respeita aos cristãos, nós sabemos e cremos que ela se realizou.

Portanto, a Ética Filosófica, precisamente no que respeita à Filosofia, não considera a realidade moral tal qual a revelação nos fá-la conhecer, mas tal qual ela se apresente pela razão, usando a sua luz natural, tal qual a razão pode escrevê-la, interpretá-la, reconhecer, e justificar as exigências. Isso cria, algures, um problema do qual nos vamos ocupar, entretanto.

Nós diremos, então, para sermos completos, que a Ética é a ciência categoricamente normativa dos atos humanos, segundo a luz natural da razão. O caráter racional da Ética não significa, de modo nenhum, que ela deva proceder de um modo racional e laico, ignorando, sistematicamente, o fato religioso e nada mais, que ela seja sem interesse para a formação do espírito cristão.

Pelo contrário, a Ética, como as outras disciplinas filosóficas, é assumida na síntese da fé, contanto que ela estude estruturas e exigências essenciais ao homem que, porque fundamentais, moram na ordem cristã, e fundam a possibilidade de um reencontro e um diálogo com os de fora. A Filosofia entregará tanto mais serviços à fé que ela seria mais autêntica, racional, mais recíproca a todas as coisas iguais algures; a filosofia perceberá tanto melhor as exigências profundas da razão que ela será mais cristã.


Diamantino Lourenço Rodrigues de Bártolo é presidente do Núcleo Acadêmico de Letras e Artes de Portugal.

  

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita