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por Rogério Miguez

 

Deveres e Direitos


Nos primórdios de nossa jornada evolutiva, ensina a Doutrina, Deus determinou, consoante Sua perfeita sabedoria, se fizesse presente em nossa individualidade o instinto de conservação. Esta necessária providência facultou ao homem sobreviver em ambientes extremamente hostis, mundos primitivos, tais quais se apresentavam no passado longínquo. Ademaisa medida se justificou plenamente, porquanto, sem esta predisposição nata a predominar, não conseguiríamos preservar a existência durante o tempo necessário à consolidação do aprendizado das primeiras lições de vida, quando precisávamos iniciar o desenvolvimento, tanto do intelecto, quanto das noções rudimentares da moral, considerando nos encontrarmos no estágio da simplicidade e ignorância.

Nada obstante, este mesmo impulso natural, viabilizando a possibilidade da manutenção da vida, também construiu em muitos de nós, pelo nosso continuado exercício no mau uso do livre-arbítrio, enfatize-se, por opção própria deixando-nos dominar por este instinto, padrões de conduta culminando no surgimento do egoísmo e do orgulho, filhos diletos do instinto de conservação. Muitos ainda hoje creem tudo lhes pertencer, estando a natureza a serviço deles: São o centro do Universo!

Estes dois vícios construíram em muitos uma percepção equivocada da vida, fazendo acreditar só existissem necessidades próprias: a melhor caverna servia para nos abrigar, as mais generosas porções de carne de animais abatidos nos pertenceriam, os melhores frutos ofertados pela natureza seriam nossos, e assim fomos, de existência em existência, buscando a nossa melhor conveniência, entretanto, ainda não entendíamos, a manutenção desta conduta se dava em detrimento das necessidades alheias. Era o comportamento egoísta atuando, se fortalecendo passo a passo.

Ao desenvolvermos gradativamente a noção de moral, nem tudo podia nos pertencer, começamos a notar, não éramos mais o eixo central do Cosmo, afinal, estabelecemos afinidades com outros Espíritos, e, se a nossa satisfação fosse a única meta da existência, nossos amados pereceriam, não vingariam na vida. Iniciamos, desta forma, um lento processo de conscientização sobre a existência de deveres, conceito até então totalmente desconhecido, e consequentemente começamos igualmente a tomar consciência da existência de um direito alheio. Elaborou-se desta forma, primeiro, o conceito de dever, em seguida o do direito.

É André Luiz quem também nos ajuda a refletir sobre esta questão1:

Em razão do apego aos rebentos da própria carne, institui a propriedade da faixa de solo em que se lhe encrava a moradia e, atendendo a essa mesma raiz de afetividade, traça a si próprio determinadas regras de conduta [deveres], para que não imponha aos semelhantes ofensas e prejuízos que não deseja receber. [...] Nasce, desse modo, para ele, a noção do direito sobre o alicerce das obrigações respeitadas [deveres]. (Destaques nossos.)

Quem fala em regras de conduta e obrigações, fala em deveres. Entretanto, não é fácil abrir mão de um bem, de uma conquista, em benefício de outro, daí a grande luta estabelecida, mesmo nos dias atuais no entendimento dos seres humanos, estejam na fase juvenil, adulta ou idosa, sejam homens ou mulheres, do Norte ou do Sul, aceitarem a igualdade de todos perante Deus, porquanto estes também são tão desejosos e merecedores de usufruir a mesma felicidade reivindicada por nós mesmos.

Este possível caminhar se agravou quando se observa a forma como evoluiu esta parte da humanidade universal ocupando o planeta Terra, orgulhosa do seu imenso conhecimento técnico, mas com consciência moral rudimentar. Dizemos parte, pois há infinitos mundos, esta foi uma opção na escolha da evolução dos homens no planeta Terra, outras civilizações, ou humanidades de outros planetas tiveram jornadas diferentes, de acordo com suas preferências em relação à conduta moral.

O egoísmo ainda viceja forte e frondoso a nos apontar apenas a busca pelos nossos direitos como solução de nossos problemas e dificuldades, e, principalmente, para nos trazer prazer e felicidade.

Observando agora particularmente o nosso país, deixando o planeta com as suas outras culturas e costumes, pois as leis refletem a sociedade, verifica-se facilmente esta vertente nos dominando, nos distanciando do lado real que acreditamos deveríamos nos debruçar, qual seja o do cumprimento de nossos deveres antes de tudo.

Realizando ligeira pesquisa em nossa constituição2, observa-se a palavra direito sendo citada em bem mais de uma centena de vezes, enquanto dever, obrigação ou obrigações, se apresenta em algumas dezenas. Repetindo o mesmo exercício no Estatuto da Criança e do Adolescente3, constata-se, basicamente, a mesma proporção anteriormente citada entre os vocábulos direito(s) e dever(es). Ainda uma vez mais, analisando o Estatuto Maria da Penha4, nota-se também a significativa supremacia do vocábulo direito em relação à palavra dever, parece ser sintomático.

Quais ensinamentos poder-se-iam retirar desta rápida pesquisa? Certamente um deles seria a constatação da exacerbada preocupação com os nossos direitos, por acreditarmos na especificação detalhada dos muitos direitos como solução para encontrar a harmonia, materializando plenamente a justiça dentro do organismo social. Há mesmo uma expressão muito usada em nossas plagas quando o trabalhador se sente prejudicado nas relações de trabalho com o seu patrão: Vou procurar os meus direitos, ameaça! Expressão esta amiúde também empregada em outras situações, como nas interações com a prestação de serviços, compras mal resolvidas, e em tantas outras interações com a sociedade.

Nestas horas, no entanto, raramente nos perguntamos: quando desejamos avidamente procurar os nossos muitos e bem delineados direitos, fomos cumpridores de nossos humildes e esquecidos deveres? Qual foi a nossa contrapartida na relação? Cumprimos com tudo que de nós era esperado, ou será que não observamos obrigações, desrespeitando os direitos alheios, como consequência, descuidando deste modo do outro lado da moeda?

Aliás, falando em moeda, quando o próprio Mestre recomendou a sábia máxima que aturdiu os maliciosos inquiridores fariseus: “a César o que é de César”, ensinou categoricamente vir em primeiro lugar o dever de dar ao Imperador o que lhe era de direito.

É interessante observar a acentuada e antiquíssima preocupação das sociedades, consoante com o entendimento e amadurecimento moral ainda incipiente da época, em estudar e formalizar estruturas de ensino e prática sobre o Direito. Tome-se como exemplo a citação de Emmanuel5: “Em Roma, surpreendemos o Direito ensinando que o patrimônio e a liberdade do próximo devem ser respeitados, no entanto, em nenhuma civilização do mundo observamos juntos tantos gênios da flagelação e da morte”.

Todavia, não se tem notícia sobre uma organização de estudos voltada para a compreensão apenas do Dever. Teremos algum dia também o curso de Deveres? buscando igualmente especificar detalhadamente as nossas obrigações, nos conscientizando da necessidade imperiosa de antes de buscar com sofreguidão os nossos direitos, observarmos primeiro se os nossos deveres foram cumpridos?

Porém, não se apresenta esta realidade, a lei humana, de modo geral, embora tenha a nobre intenção de bem reger a vida em sociedade, visando ao bem comum, ainda parece incentivar a conduta de cada qual cuidando apenas de si, em uma busca desenfreada pelo atendimento das necessidades básicas e atingimento de metas pessoais. Se considerarmos ainda a imensidade de atos não praticados, mas desejados, unicamente na alçada do tribunal da consciência, percebemos o quanto ainda precisamos avançar em moralidade e sabedoria para aceitar pacificamente o cumprimento dos deveres como norma primeira de conduta para nós mesmos.

Jesus já nos apontou a importância do dever cumprido quando nos propôs a Parábola do Bom Samaritano, colocando em destaque o viajante de Samaria, perfeito cumpridor do próprio dever, ou por outra, superando em muito o atendimento das obrigações, pois não só auxiliou um desconhecido, quanto por ele se responsabilizou após o haver instalado em hospedaria próxima na estrada.

Enquanto não nos conscientizarmos de que a vida em sociedade requer a rigorosa observação do cumprimento de nossos deveres, antes de nos aventurarmos a procurar os nossos tão bem delineados direitos, prepararemos muitos Estatutos, formalizaremos inúmeras leis, objetivando defender o direito daqueles que por sua posição mais frágil precisam ser defendidos, contudo, nos frustraremos ainda por longo tempo verificando desiludidos que mesmo estabelecidos os direitos alheios em todas as suas particularidades e minúcias, estes ainda por muito tempo deixarão de ser respeitados.

As leis ainda se destinam àqueles destituídos de um justo sentimento e entendimento, não indicando ser muito mais importante cumprir simplesmente os nossos deveres, ao invés de redigir, criar e lembrar infinitos direitos, afinal, a noção de Direito não modifica a essência humana, a conscientização do Dever, sim.

Este tempo chegará à medida de nosso esforço para viver a Lei do Cristo e não a “lei de Gérson”: "Amar o próximo como a si mesmo: fazer pelos outros o que quereríamos que os outros fizessem por nós", sendo esta a expressão mais completa da caridade, porque resume todos os deveres do homem para com o próximo6.(Destaque nosso.)

Nesta hora, então, a máxima: Dever cumprido, direito esquecido vigerá conosco eternamente.


Notas

1 XAVIER, Francisco Cândido; VIEIRA, Waldo. Evolução em dois Mundos. Pelo Espírito André Luiz. 1. ed. Rio de Janeiro: FEB, 1959. cap. XI, p. 80.

2 Disponível em: eis o link - 1 - Acesso em: 19/6/2018

3 Disponível em: eis o link - 2 - Acesso em: 19/6/2018

4 Disponível em: eis o link - 3 - Acesso em: 19/6/2018

5 XAVIER, Francisco Cândido. Roteiro. Pelo Espírito Emmanuel. 5. ed. Rio de Janeiro: FEB, 1980. cap. 12, p. 57.

6 KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Trad. Guillon Ribeiro. 97. ed. Rio de Janeiro: FEB, 1987. cap. XI, item 4, p. 190.


 

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita