Clássicos 
do Espiritismo

por Angélica Reis

 
Deus na Natureza

Camille Flammarion

(Parte 61)

 

Continuamos o estudo metódico e sequencial do livro Deus na Natureza, de autoria de Camille Flammarion, escrito na segunda metade do século 19, no ano de1867.


Questões preliminares


A. De que provém a principal força do ateísmo?

Conforme o pensamento de Flammarion, a principal força do ateísmo provém dos excessos cometidos pelo Espiritualismo. Como têm tratado a Natureza os imprudentes espiritualistas? Admitiram uma eternidade inativa, uma criação espontânea do Universo. No vácuo infinito, uma vontade arbitrária estabelece a sucessão, a duração e a extensão. O mundo não radica no passado e aparece-nos como puro acidente. Mas, não é só: o espiritualismo exclusivista comporta concepções ainda mais temerárias, tais como a negação da matéria, fato comentado por Flammarion na primeira parte deste livro. (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)

B. Em que creem e como se comportam os fanáticos?

Eles creem em muitas coisas e, em alguns casos, acreditam firmemente nos mais clamorosos absurdos, chegando a presumir-se em relação direta com  Deus e a conferir-se, por virtude dessa mesma graça, o privilégio da infalibilidade. Esses espíritos pecos imaginam, ingenuamente, que o fantasma que eles forjaram é o verdadeiro Deus, criador do céu e da Terra, e ao mínimo pretexto averbam doutoralmente, de ateus e ímpios, quantos com eles não comungam. Não sabem distinguir o formal do essencial. Se, por exemplo, escrevermos esta profissão de fé: “cremos de todo o coração na existência de Deus, mas não conhecemos o Ser misterioso, assim denominado e julgamos impossível que o homem consiga compreendê-lo” – estamos certos de que os zelotes da religião e da moral vão de pronto gritar – blasfêmia, iniquidade! – e interditar às suas ovelhas a leitura deste livro. (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)

C. É verdade que espíritos assim tacanhos encontramos em todas as confissões religiosas?

Sim, tanto no seio dos cristãos, como entre os judeus e os muçulmanos. Toda bandeira tem os seus imprudentes. Contudo, a investigação imparcial da verdade exclui de seus domínios os exageros do fanatismo, tanto quanto os do cepticismo. E prossegue na sua tarefa laboriosa e fecunda, expondo sinceramente o ensinamento recolhido das suas descobertas sucessivas. (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)


Texto para leitura


1081. Pela documentação de Arístoto, vemos que a grande preocupação de Xenófanes era não identificar Deus com o mundo, sem contudo conceituá-lo uma abstração. A ideia de um ser infinito, fora do movimento, parecia-lhe uma ideia puramente negativa e, por isso, receava aplicá-la a Deus. Ao mesmo tempo, como pitagórico, repugnava-lhe fazer dele um ser finito, móbil e unicamente dotado de atributos mundanos. (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)

1082. Simplícius lembrou dois versos do filósofo, nos quais parece admitir a imobilidade do primeiro princípio: – “Ele permanece imutável em si mesmo, não se desloca de um lugar para outro, de vez que é idêntico a si mesmo.” (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)

1083. Xenófanes preocupou-se principalmente com o mundo exterior, mas, não estranho às especulações pitagóricas, soube entrever a inteligência, a harmonia e a unidade deste mundo, chamando Deus a essa unidade, tal como a entrevia e sentia, isto é: em relação íntima com o mundo, sem negar que fosse essencialmente distinta, mas tampouco afirmando que o fosse.(Deus na Natureza – Quinta Parte.Deus.)

1084. Todos os historiógrafos concordam em atribuir a Xenófanes a invenção do cepticismo universal, ao mesmo tempo que o acusam de panteísta. Valerá, talvez, frisar aqui a extravagância dessa forma de acusação, que começa por irrogar a um homem o seu ferrenho dogmatismo e acaba censurando-o por haver introduzido na Filosofia a doutrina da incompreensibilidade de todas as coisas. Sêxtus cita em apoio desta opinião um texto de Xenófanes: “Nenhum homem soube nem saberá nada de certo a respeito dos deuses e de tudo quanto falo. E o que melhor fala nada sabe, e o que predomina em tudo é a opinião”.(Deus na Natureza – Quinta Parte.Deus.)

1085. O próprio filósofo, também ele, não se explica de um modo claro. Pois não diz tratar-se daqueles deuses aos quais sabemos que ele movia uma guerra encarniçada? O laço que o prendia às duas escolas de que fazia parte era o cepticismo e nessas escolas vigorava, com fórmula convencionada, que a crença nos deuses era extracientífica. Hoje estamos na mesma situação: há deuses humanos a desmascarar e um Deus verdadeiro a revelar. Hoje ainda, como no tempo de Xenófanes, importa combater essas tendências do homem para tudo referir a si e para transportar as suas ideias imperfeitas ao domínio do Criador. (Deus na Natureza – Quinta Parte.Deus.)

1086. A ciência iconoclasta derruba as nossas imagens pueris. A Ciência, é verdade, não se ocupa diretamente com as nossas crenças; ninguém duvida tenha ela outros motivos de estudo menos incompreensíveis e mais positivos. A principal força do ateísmo provém, indubitavelmente, dos excessos mesmos do Espiritualismo, a desafiarem uma inevitável quão legítima correção. (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)

1087. Como têm tratado a Natureza os imprudentes espiritualistas? Admitiram uma eternidade inativa, uma criação espontânea do Universo: no vácuo infinito, uma vontade arbitrária estabelece a sucessão, a duração e a extensão. O mundo não radica no passado e aparece-nos como puro acidente. Mas, não é só: o espiritualismo exclusivista comporta concepções ainda mais temerárias, tais como a negação da matéria, que já entrevimos na primeira parte. (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)

1088. Berkley[i] emitiu estas duas afirmações: “Há verdades tão perto de nós e tão fáceis de alcançar, que basta abrir os olhos para as perceber. Entre as mais importantes, parece-me encontrar-se a de que a luminosa abóbada celeste, a Terra e quanto nela se contém, tudo, em suma, que compõe este Universo esplêndido não tem realidade fora do nosso espírito.” Confessemos que levar o paradoxo a esse ponto é provocar o excesso contrário, que não demora a rebatida violenta sob o prisma do ateísmo. (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)

1089. Fanáticos outros há que não só acreditam firmemente nos mais clamorosos absurdos, como se presumem em relação direta com o próprio Deus e se conferem, por virtude dessa mesma graça, um privilégio de infalibilidade. Esses espíritos pecos imaginam, ingenuamente, que o fantasma que eles forjaram é o verdadeiro Deus, criador do céu e da Terra, e ao mínimo pretexto averbam doutoralmente, de ateus e ímpios, quantos com eles não comungam. Em os ouvindo, é preciso acreditar nas suas pataratas, ou de tudo descrer. Não há meios-termos. Todo espírito que se não veste pelo seu figurino é anátema. Chegam mesmo a declarar que preferem o mais obstinado incrédulo ao crente que diverge das suas opiniões. (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)

1090. Não sabem distinguir o formal do essencial. Se, por exemplo, escrevermos esta profissão de fé: “cremos de todo o coração na existência de Deus, mas não conhecemos o Ser misterioso, assim denominado e julgamos impossível que o homem consiga compreendê-lo” – estamos certo de que os zelotes da religião e da moral vão de pronto gritar – blasfêmia, iniquidade! – e interditar às suas ovelhas a leitura deste livro. (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)

1091. Não nos detivesse aqui um escrúpulo todo pessoal e poderíamos, assim, de antemão citar o título dos jornais e o nome dos escritores que nos vão increpar de blasfemo. Espíritos assim tacanhos encontramos em todas as confissões e em todos os dogmas: nos católicos e protestantes da Irlanda ou da Alemanha, como nos judeus ou nos muçulmanos do Cairo e de Constantinopla. Toda bandeira tem os seus imprudentes. Todavia, a investigação imparcial da verdade exclui de seus domínios os exageros do fanatismo, tanto quanto os do cepticismo. Ela prossegue na sua tarefa laboriosa e fecunda e expõe sinceramente o ensinamento recolhido das suas descobertas sucessivas. (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)

1092. Dos progressos gerais da Ciência resulta, dizíamos, que a ideia comum acerca de Deus está atrasada e tornou-se até mesquinha e inaceitável, à face desses enormes progressos. À medida que se amplia o conhecimento da Natureza, faz-se necessário desenvolver a concepção do seu Autor. São noções paralelas que participam, necessariamente, dos mesmos movimentos. Assim como nada existe de absoluto em nossos conhecimentos da criação, assim também, nada absoluto podemos idealizar sobre o Criador. E a Ciência, longe de destruir a velha ideia da existência de Deus, desenvolve-a e torna-a gradualmente menos indigna da majestade que lhe é apanágio.(Deus na Natureza – Quinta Parte.Deus.)

1093. Assim, não é mais um ser humano, não é mais uma personagem real que a inteligência atilada lobriga na cimeira da criação. Nossos mais altos conceitos de hierarquia, de soberania, de cetros e tronos perderam toda a capacidade de comparação; os mais nobres sentimentos de santidade, grandeza, poder, bondade e justiça abatem-se estéreis perante o ser desconhecido. Quando pronunciamos a palavra infinito, queremos nos referir a um atributo cujo caráter ignoramos totalmente. A soma integral dos nossos pensamentos é menos que zero no cômputo do absoluto. Comparados à realidade desse absoluto, estão dele mais infinitamente distantes do que estariam dos nossos os de um mísero peixe nas profundezas oceânicas. É nessa altura que as revelações da Ciência nos convidam a crer. (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)

1094. Dilatando-se a esfera de nossa contemplação e espalhando uma luz mais instrutiva sobre a composição geral do Universo, também avulta e aclara-se-nos o senso íntimo da divindade. Ora, ainda que a Ciência não nos houvera prestado outros serviços, ainda assim, enorme seria a sua influência, visto que, ensejando o desmoronamento dos velhos andaimes para substituí-los e entremostrar o edifício ideal da verdade, ela desloca o eixo do mundo e renova a superfície do terreno intelectual. É ao espírito científico que se aplica doravante o Renovabis faciem terrae. (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)

1095. Passando dos domínios dos seres criados para os do espírito puro, a noção de Deus sofre uma metamorfose correlata à noção das forças da Natureza. Estas forças não são mais elos materiais, nem mesmo fluídicos. Deus aparece-nos sob a ideia de um Espírito permanente e residente no âmago das coisas. Deixa de ser o soberano a governar das alturas celestes para ser a lei invisível dos fenômenos. Não habita um Paraíso povoado de anjos e de eleitos e, sim, a amplidão infinita, repleta da sua presença, ubiquidade imóvel, totalizada em cada ponto do Espaço, em cada instante do tempo, ou por melhor dizer, eternamente infinita e sobranceira a tempo, espaço e ordem de sucessão, qualquer passado e futuro existem para nós, seres sujeitos a tempo e medida, não para o Eterno. O espaço oferece-nos dimensões variadas e o infinito não. Não são afirmações metafísicas de cuja solidez possamos suspeitar, mas, antes, deduções inevitáveis e resultantes dos próprios dados da Ciência sobre a relatividade dos movimentos e a universalidade das leis. (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)

1096. A ordem universal reinante na Natureza, a inteligência revelada na construção dos seres, a sabedoria espalhada em todo o conjunto, qual uma aurora luminosa e, sobretudo, a universidade do plano geral regida pela harmoniosa lei da perfectibilidade constante, apresenta-nos, já agora, a onipotência divina como sustentáculo invisível da Natureza, lei organizadora, força essencial, da qual derivam todas as forças físicas, como outras tantas manifestações particulares suas. Podemos, assim, encarar Deus como um pensamento imanente, residente inatacável na essência mesma das coisas, sustentando e organizando, ele mesmo, as mais humildes criaturas, tanto quanto os mais vastos sistemas solares, de vez que as leis da Natureza não mais seriam concebíveis fora desse pensamento; antes, são dele eterna expressão.(Deus na Natureza – Quinta Parte.Deus.)

1097. Esta convicção, adquirimo-la no exame e análise dos fenômenos da Natureza. Para nós, Deus não está fora do mundo, nem a sua personalidade se confunde na ordem física das coisas. Ele é o pensamento incognoscível, do qual as leis diretivas do mundo representam uma forma de atividade. (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)

1098. Tentar a definição desse pensamento e explicar o seu processo operatório, pretender discutir seus atributos ou procurar os seus caracteres, resolver o abismo infinito na esperança de poder satisfazer nossa avidez de conhecimento, seria, ao nosso ver, empresa não apenas insensata, mas até ridícula. Um tal ensaio demonstraria que o seu autor não compreendera a distinção essencial que separa o infinito do finito. Entre estes dois termos há uma distância que ponte alguma poderia cobrir. Deus é, por sua natureza mesma, incognoscível e incompreensível para nós. (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)

1099. Não é preciso mergulhar no labirinto do desconhecido para chegarmos à certeza da existência de Deus. Em o fazer, talvez houvesse mesmo algum perigo, se se obstinassem a viver nas sombras de um mistério impenetrável. Certo, é já dificílimo inferir do Ser supremo a noção científica que aqui deixamos entrever. Os próprios espíritos mais ponderados experimentam áridos obstáculos para assim penetrar no desconhecido pelo conhecido, no invisível pelo visível, na lei pensada pela lei manifestada, na força original pela força sensível. (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)

1100. Estamos tão intimamente convencidos do trabalho necessário ao intelecto humano para chegar à noção filosófica do Deus da Natureza, que nos abstivemos de profundar mais a sua concepção, temendo que uma forçada contensão de espírito pudesse empanar a própria ideia. Concepção só acessível, portanto, às almas que compreendem a importância e o interesse desses problemas, sonhando, nas horas de solitude, com a revolução de Deus pela ciência da Natureza e descendo ou elevando-se (em Astronomia é a mesma coisa) através do velário das aparências corpóreas, até à causa virtual que tudo movimenta em plano de ordem e harmonia, tudo dispondo consoante seu peso e medida. (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)

1101. Esta concepção do pensamento eterno poderá parecer racional (assim o esperamos) a quantos estejam habituados ao método das ciências positivas e não se tenham transviado nelas, a ponto de obliterar a noção de causa primária. À progênie dos que mutuamente se incendiaram nos tempos de João Huss e de Miguel Cervet, a nossa concepção há de parecer herética. Eles nos inquinarão de panteísta, sem querer compreender que não identificamos a personalidade divina com as transformações da matéria. Hão de declarar que pretendemos que tudo é Deus e que todo o mundo se governa por si mesmo. (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)

1102. Outros terão a fantasia de nos qualificar de ateu e corruptor da moral evangélica, incapazes, que são, de compreender a adoração a outro Deus que não o seu. Uma terceira categoria, ainda mais radicalista e exagerada, tratará de malfeitores a quantos se deixarem levar pela ideia acima formulada. Mas, aonde iríamos parar se houvéssemos de revidar a toda essa gente? Na realidade, toda essa atoarda só significa uma coisa: que estamos caminhando para a frente.(Deus na Natureza – Quinta Parte.Deus.)

1103. A doutrina aqui professada pode considerar-se um ateísmo ontológico, o esforço do homem para conhecer o Ente absoluto. É uma forma necessária, imposta pelo teísmo racional. O argumento extraído da Teologia prova um Deus universal, autor de todas as coisas, e o argumento da Ontologia prova a infinidade de Deus. Não podemos admitir um sem outro, quaisquer que sejam as dificuldades para conciliar as respectivas conclusões. Essas dificuldades decorrem da grandeza do assunto e, ainda que não podendo ir além do alcance da nossa vista, não é razão para fechar os olhos ao que se torna evidente. Trocando o vocábulo panteísmo por teísmo, confessamos, com um pastor anglicano[ii], que o “teísmo” é, por toda parte, reconhecido como teologia da razão, razão que poderá ser impotente, mas, em definitiva, é a única que possuímos. (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)

1104. O teísmo é a filosofia da religião, de todas as religiões, é o alvo da verdade. Preciso se nos faz pensar, ou deixar de pensar e raciocinar acerca de todos os problemas da criação. Podem as criaturas deter-se no símbolo; Igrejas e seitas podem lutar e tolher a meio caminho as consciências, apelando para Escrituras ou tentando fixar limites ao pensamento religioso, mas Deus, esse, não os tem fixado. A razão humana, todavia, incoercível e inevitável no seu progredir, como no seu divino amor à liberdade, quebra todas as cadeias e vence todos os entraves. (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)

1105. Se, ao invés de tomar por objeto de estudo Deus, na Natureza, preferíssemos aqui apresentar Deus segundo os homens, competiria discutir, agora, a ideia que os filósofos contemporâneos formularam, a respeito do Ente supremo. E seria, na verdade, um exame digno do maior interesse. Mas os limites sempre crescentes desta obra nos forçam a restringir a argumentação ao seu objetivo precípuo. Nosso dever, portanto, é aqui juntar simplesmente o esboço das figuras em que se fixaram os nossos pensadores, para representar a personificação divina. (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)

(Continua no próximo número.)


 

[i]     Princ. Conn. Hum.

[ii]    Reverendo John Hunt – An Essai on Pantheism, 1866.

 


 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita