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por Cláudio Bueno da Silva

  

Um desbravador moral


O céu pejado de estrelas rebrilha na noite silenciosa. Candeeiros de azeite, suspensos nos postes, iluminam as ruas de terra. As águas dos rios Tamanduateí e Anhangabaú são límpidas e correm refletindo o luar, enquanto carros puxados a cavalos transportam os últimos passageiros. A cidade respira atmosfera eminentemente rural. A vegetação ainda inexplorada se alonga em vasto território, onde animais silvestres que escaparam dos caçadores se aquietam para o descanso noturno.

São assim as noites na São Paulo de quase 28 mil habitantes, por volta de 1850. Os campos e chácaras vão formando agrupamentos, vilas, preparando-se para o progresso que certamente virá.  

Algumas regiões de maior concentração de pessoas já acusam desenvolvimento rápido. O progresso tem pressa, se espraia pelas Freguesias da Sé, Ifigênia e Brás, e vai rasgando as paisagens bucólicas e erguendo pontes, abrindo ruas, levantando casas. Ao mesmo tempo, a industrialização e a cultura do café, alavancando o desenvolvimento econômico do Estado de São Paulo, trazem reflexos à capital, transformando-a em núcleo cultural importante. A proliferação das publicações literárias e a presença de acadêmicos da Faculdade São Francisco, dentre eles Rui Barbosa, enriquecem a vida política e literária da cidade, já por volta de 1860.

Peças de teatro com temas nacionais começam a substituir os dramalhões estrangeiros, e Martins Pena, João Caetano, França Júnior são encenados com grande sucesso, assim como as sessões de música erudita e popular enchem os auditórios. O palco é o do Teatro São José, com 1200 lugares, situado no Largo São Gonçalo, a atual Praça João Mendes, no centro de São Paulo.

Rua do Espírita

Mas há um teatro bem menor, com apenas 200 cadeiras. É o teatrinhodo português Antonio Gonçalves da Silva, conhecido como Batuíra, que funcionará entre 1860 e 1870 na hoje Rua Quintino Bocaiúva. O local atrai estudantes e intelectuais. Batuíra é muito querido pelos frequentadores e o clima ali é sempre de humor e boa cultura. A repercussão do seu trabalho pioneiro no teatro irá render-lhe reconhecimento e muitas citações de escritores e historiadores em obras relacionadas à história de São Paulo.        

Nascido em Portugal a 19 de março de 1839, o menino vem para o Brasil com 11 anos. Ganha a vida como vendedor de jornais, ajudante no comércio, lavrador, tipógrafo. Logo funda um jornal, revelando desde cedo um caráter muito dinâmico.

Mostra seus elevados princípios de justiça e caridade quando colabora com o movimento antiescravagista, dando proteção a escravos foragidos. Sabe-se que faz parte de um grupo abolicionista, colaborando e ajudando a manter um boletim em defesa da causa. No grave surto de varíola que se abate sobre São Paulo em 1873 evidencia-se ainda mais o valor humanitário da sua alma. Mesmo lidando com a virulência contagiosa da doença, Batuíra desdobra-se em solidariedade, cedendo sua própria casa para recolher e tratar os doentes. Sua figura se populariza.

Com seu espírito empreendedor consegue folga financeira, compra terras desvalorizadas na região do Lavapés e constrói casas para alugar. O progresso acelerado forma ali uma vila, onde surge a “rua do espírita”, mais tarde Rua Espírita, existente até hoje.

Alegria no velório

A vida empreendedora vai muito bem, no entanto, uma nova etapa propõe mudanças para Batuíra. As atividades de caráter pessoal e de intensa presença junto aos desvalidos ganharão novos contornos.

Nesse período (1883), a calma da vida familiar é rudemente abalada pela morte de seu segundo filho, de doze anos. Esse episódio marca sua aproximação do Espiritismo.

É precisamente no velório do filho, em meio a rezas, choro e manifestações de tristeza que Batuíra, embora respeitando o apoio sincero dos amigos, surpreende a todos, protagonizando um lance inesperado. Inquieto, um tanto sobressaltado, sai da sala mortuária e vai para o quarto, onde se isola em oração fervorosa, pleiteando uma resposta de Deus à sua dor.

Segundo seu próprio depoimento, mais tarde, viu a formação de uma luz que foi trazendo aos poucos o vulto do filho Quinho, que lhe disse: “Pai, não fique triste. Eu não morri. Estou mais vivo do que nunca”.

A visão do filho transmitindo-lhe calma foi a maior emoção que Batuíra pôde sentir em vida. Volta ao velório e, espantando a todos os presentes, diz: “Não quero mais choro aqui. Meu filho não morreu. Meu filho vive (...). Eu só quero alegria a partir deste instante”. Sai à rua e quando retorna traz uma banda a tocar dobrados, polcas e marchas festivas...

A vertente do amor

As leituras espíritas levaram Batuíra a compreender a Doutrina sob o aspecto da caridade e do amor ao próximo. A índole solidária que lhe é inata desabrocha de vez, a ponto de espantar a sociedade paulistana o fato de um homem abastado dedicar-se com tanto afinco àqueles que nada lhe podiam retribuir.

Sempre envolvido com os ideais fraternos funda centros espíritas, participa do movimento e se preocupa com a união dos espíritas. Com o crescente interesse dos paulistas pelo Espiritismo, Batuíra vê a possibilidade de iniciar a divulgação da Doutrina através de um periódico. Compra uma tipografia e, em 1890, lança o primeiro número do jornal Verdade e Luz, que se autodefine como “Órgão do Espiritismo Científico” e que chega, em certos períodos, à incrível tiragem, para a época, de 15 mil exemplares.

Escreve artigos e refuta acusações contra o Espiritismo. Boa parte dos seus recursos pessoais é despendida nos 18 anos de sua publicação.

A imprensa leiga noticia sua morte

Depois de uma vida extremamente ativa e solidária, Batuíra se despede do mundo físico a 22 de janeiro de 1909. Sepultado no Cemitério da Consolação, em São Paulo, seu falecimento é noticiado em muitos órgãos da imprensa. O Diário Popular informa: “Cerca de uma hora da madrugada faleceu nesta Capital o Sr. Antonio Gonçalves da Silva Batuíra, muito conhecido e estimado em nosso meio”.

Batuíra teve forte presença na obra psicográfica de Chico Xavier. Nos anos 1940, se materializou várias vezes nas célebres sessões com o médium de efeitos físicos Peixotinho, no Rio de Janeiro. É tido como uma das grandes figuras da história do Espiritismo em São Paulo e no Brasil.


(Baseado no livro Batuíra – Verdade e Luz, de Eduardo Carvalho Monteiro, Lúmen Editorial, 1999.)

 

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita