Clássicos 
do Espiritismo

por Angélica Reis

 
Deus na Natureza

Camille Flammarion

(Parte 47)

 

Continuamos o estudo metódico e sequencial do livro Deus na Natureza, de autoria de Camille Flammarion, escrito na segunda metade do século 19, no ano de1867.


Questões preliminares


A. Que pensava Flammarion acerca da mania de se explicar o como e o porquê de todas as coisas conforme sua utilidade?

Flammarion criticava os que assim agiam, atribuindo esse procedimento à simples ignorância de como as coisas realmente ocorrem. Evidentemente, isso nada representaria se esses devaneios fossem inculcados pelo seu justo valor e não pretendessem insinuá-los como verdades, como artigos de fé, a ponto de seus autores considerarem uma impiedade quando alguém os tachava de absurdos. Mas a ideia da causalidade final já havia caído, em sua época, no mais absoluto descrédito. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

B. A respeito do assunto que disse Montaigne?

Eis as palavras do grande filósofo e humanista francês: “É preciso julgar com muita moderação as coisas divinas. Aquilo em que mais se acredita é justamente o que menos se conhece; nem haverá pessoas mais autorizadas do que aquelas que nos contam fábulas, como sejam os alquimistas, os adivinhos, quiromantes, médicos, id gezus omne, aos quais de bom grado eu juntaria, se mo permitissem, uma certa classe de indivíduos que se metem a interpretar e controlar os desígnios de Deus, gabando-se de encontrar as causas de cada acidente e de ver, nos segredos da vontade divina, a razão incompreensível da sua obra. Esbarrados a cada canto, atirados de um lado para outro, mercê da variedade e discordância contínua dos episódios, nem assim deixam eles de seguir o seu painel, a pintarem com o mesmo lápis o preto e o branco.” (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

C. Para que existe o planeta em que vivemos?

Segundo Flammarion, a Terra foi construída e organizada para sede da vida e da inteligência. Os mundos, conforme ele expôs em uma obra anteriormente publicada, foram construídos para moradia do espírito. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)


Texto para leitura


849. O autor das Cartas a Sofia, Sr. Aimé Martin, nos sugere a crença de que prevendo o Eterno que o homem não poderia habitar a zona tórrida, nela formou as mais altas montanhas, para aí lhe proporcionar um clima agradável. Mais adiante acrescenta que “se a chuva escasseia nas regiões arenosas, é porque aí se tornaria inútil”. Na baixa Normandia é usual despejar-se o cálice do conhaque no café, e eu muitas vezes tive ocasião de conjeturar que, se ao bom Deus aprouve fosse a aguardente mais leve que o café, não seria senão para que ele pudesse arder à tona e desse, assim, mais um aroma à excelente fusão colonial. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

850. Há ainda um infinito número de fatos não menos importantes, que nos fazem amar as causas finais. Segundo Bernardin de Saint-Pierre, os vulcões, localizados sempre perto dos mares, destinam-se a consumir as matérias corrompidas que carreiam e que poderiam infeccionar a atmosfera. As tempestades têm a virtude de refrescar a mesma atmosfera, etc. Pensava ele, também, que as pulgas nasceram pretas para que as pudéssemos distinguir na brancura de nossa pele e então puni-las. A plumagem retinta dos corvos, na opinião do Sr. Martin, é para que perdizes e lebres, de que se alimentam no Inverno, possam percebê-los, de longe, sobre a neve. O eloquente autor do Gênio do Cristianismo diz que vendo-se, qual pequena flama azulada, fugir a serpente ondulante, facilmente nos convencemos de que foi ela que seduziu a primeira mulher. O autor das Cartas pré-citadas também afirma que os insetos venenosos são feitos para que o homem desconfie deles. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

851. É claro que o ideal religioso e a doutrina da Providência nem sempre foram bem servidos por seus prosélitos. Quando se escoram tais sentimentos com motivos assim pueris, e frívolos, corre-se o risco de comprometer a causa perante os semissábios, o que vale dizer, a maioria dos espíritos. Tentativas que tais não logram senão caricaturar o Ser supremo. A propósito de uns tantos filósofos do seu tempo, dizia Duclos: “Essa gente acabará levando-me à missa”. Hoje, diante da opinião de uns tantos devotos, também chegamos a imaginar que esta gente acabará fazendo-nos duvidar da Providência. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

852. São ideias que pecam, não apenas por falsidade, mas pelo imperdoável estigma do ridículo. Assemelham-se àqueles camponeses de que nos fala Riehl[i], incapazes de ver no mundo outras belezas além das roupas domingueiras das alentadas conterrâneas, que também vestem as imagens em certos dias festivos. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

853. O próprio Fénelon não se forra à censura. Assim é que nos representa o Sol como regulando expressamente o trabalho e o repouso, as necessidades e os prazeres. Graças ao seu movimento diurno e anual, um único sol basta para toda a Terra. Se fora maior, à mesma distância, abrasaria, pulverizaria o mundo; se menor, a Terra se congelaria, tornar-se-ia inabitável. Se, do mesmo tamanho, estivesse mais afastado, deixaríamos de viver, à mingua de calor. Que compasso, pois, abrangendo em seu círculo céu e Terra, teria assinalado medidas tão exatas? De fato, ele não beneficia menos as regiões das quais se afasta, do que o faz àquelas de que se aproxima por favorecê-las com os seus raios... (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

854. Lícito é, certamente, pôr em dúvida o valor absoluto deste raciocínio, pois a partilha uniforme dos dias e das noites só se verifica no equador, para diminuir progressivamente e desaparecer nos polos, com todas as suas virtudes e benefícios. Se lá, nos polos, algum dia escreverem para glorificar a Providência, hão de ver que lhe renderão graças pelos dias e noites semestrais. Em Mercúrio, ou em Netuno, hão de concluir que o Sol também está à distância convinhável à eclosão da vida ambiente. Era Júpiter, louvarão o Criador por lhes ter concedido quatro luas, tanto quanto em Saturno agradecerão a dádiva de um anel, que reúne o útil ao agradável, etc. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

855. Diante de tais argumentos não há que admirar tenha a causalidade final caído no mais absoluto descrédito. Eis aí, contudo – dizia J. B. Biot[ii] – a que extremos levaram a mania, hoje tão comum, de explicar o como e o porquê de todas as coisas naturais, conforme o imperfeito e vago sentimento utilitário que delas possamos ter. Cada qual, assim, regula a previdência da Natureza ao nível de suas luzes, tornando-a mais ou menos louca, na pauta da própria ignorância. Isso nada representaria, uma vez que tais sonhos fossem inculcados pelo seu justo valor e não pretendessem insinuá-los como verdades, como artigos de fé, a ponto de considerarem os seus autores uma impiedade, quando os tachamos de absurdos. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

856. “É preciso – opina Montaigne – julgar com muita moderação as coisas divinas. O em que mais se acredita é justamente o que menos se conhece; nem haverá pessoas mais autorizadas do que aquelas que nos contam fábulas, como sejam os alquimistas, os adivinhos, quiromantes, médicos, id gezus omne, aos quais de bom grado eu juntaria, se mo permitissem, uma certa classe de indivíduos que se metem a interpretar e controlar os desígnios de Deus, gabando-se de encontrar as causas de cada acidente e de ver, nos segredos da vontade divina, a razão incompreensível da sua obra. Esbarrados a cada canto, atirados de um lado para outro, mercê da variedade e discordância contínua dos episódios, nem assim deixam eles de seguir o seu painel, a pintarem com o mesmo lápis o preto e o branco.” (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

857. Por terem sido escritas há quatrocentos anos, estas judiciosas palavras do venerando ancião não deixam de exprimir uma verdade que tem aplicação a cada momento. Elas merecem ser juntadas à comparação que o mesmo autor faz do homem com o ganso, que se gloria de ser o “favorito da Natureza” – comparação já por nós desenvolvida[iii] a propósito da vaidade humana, que, de longada, construiu o Universo nos moldes de sua fantasia. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

858. Desde que o homem se deixa arrastar pelo natural pendor de tudo referir a si, torna-se capaz de reduzir o mundo inteiro, para fazê-lo entrar nos seus planos estreitos e mesquinhos. O Sol já não é, então, mais que um seu mísero servo; as estrelas não passam de ornamento para decoração do seu cenário e servindo-lhe de roteiro na exploração dos mares. Se a atração luno-solar, duas vezes por dia, levanta as águas oceânicas, é apenas para facilitar a entrada no Havre dos navios que chegam de Nova Iorque ou do Rio Amarelo. Se a casca do carvalho excreta o tanino, é para que possamos ter bons couros. Se o bômbix fia a seda no seu casulo, é para ofertar belos estojos às mulheres elegantes. O rouxinol saúda a aurora? Então é para o encanto auditivo de quem o ouve. A Natureza inteira, enfim, foi criada visando o homem, e toda ela concorre para ajudá-lo e o fazer feliz. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

859. É evidente que, quando se chega a tais excentricidades, a causalidade final fica singularmente prejudicada. Pretender que tudo tenha sido expressamente criado para o homem é abusar muito ingenuamente da nossa posição. Antes de tudo, é preciso distinguir a Natureza em duas partes bem diferentes: o Céu e a Terra. O Céu é o espaço infinito, a multidão incalculável de mundos, o conjunto; a Terra, uma gota d'água no oceano, um grão de areia, um átomo. Que o Céu se tenha criado para o habitante da Terra, é ideia absurda, inconcebível. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

860. O Céu não conhece a Terra e o homem, por sua vez, não conhece a mínima partícula do Céu. As estrelas são sóis, centros de sistema de outras terras habitadas. Contamo-las por milhões e certificamo-nos de que o nosso planeta lhes é absolutamente desconhecido e insignificante, em relação a elas, que ocupam no espaço domínios tão vastos que a própria luz leva milhares de anos para atravessá-los. De sorte que, se o nosso globo deixasse hoje de existir, seu desaparecimento não seria matematicamente percebido pelos mundos siderais. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

861. O átomo terrestre turbilhona, célere, em torno do Sol, com a docilidade da funda nas mãos de um gigante. Mil revoluções siderais se completam simultaneamente, no infinito, em todas as latitudes imagináveis e distantes deste átomo... Quando, pois, o homem pretende a imensidade opulenta dos céus desdobrada no vácuo em sua exclusiva intenção; quando fala de princípio e fim do mundo, como se se referisse à sua pessoa, equipara-se a uma formiga que julgasse o campo em que assenta o seu formigueiro, traçado para oferecer-lhe belas perspectivas. As árvores floridas foram destinadas ao prazer da vista e aquela casinha branca, lá mais longe, não foi construída senão para lhe servir de ponto de referência; e finalmente: o proprietário desse campo não cogitou senão dela – formiga inteligente – quando organizou o seu habitat com aqueles jardins, pomares, campos e florestas. Desígnio manifesto. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)

862. Se, secundariamente, nos restringirmos à Terra, a ideia de uma finalidade criadora é aqui mais particularista e não haverá absurdidade em pretender o homem tenha sido ela construída e organizada para sede da vida e da inteligência. Pode-se mesmo ajuntar que, no plano terreno, o homem é o ser mais elevado. Só ele recebeu o dom da inteligência. Se desaparecesse da Terra, é de crer que esta perderia a sua razão de ser no concerto universal, a menos que viesse outra raça intelectual suceder-lhe, o que leva a crer tenha sido mesmo destinado para ser habitado. Temos precisamente demonstrado, em uma obra anterior, que os mundos foram construídos para moradia do espírito. (Deus na Natureza – Quarta Parte. Plano da Natureza - Construção dos Seres Vivos.)


 

[i]     Die Burgeliche Geseltschaft.

[ii]    Mélanges Scientifiques et Litteraires.

[iii]   Mundos Reais e Mundos Imaginários parte 2ª, capítulo 5º.

 


 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita