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por Gabriel Lopes Garcia

 

Suicídio na população transgênero: possíveis ações dos movimentos espíritas


Nicholas Domingues Monteiro, 20 anos, era aluno do Bacharelado Interdisciplinar de Ciências Humanas na Universidade Federal de Juiz de Fora. Homem trans, integrava o projeto Visitrans na UFJF e militava na União da Juventude Comunista. Cometeu suicídio em 5 de julho de 2017. Pouco antes do episódio fatal, ele publicara um desabafo na internet, do qual separamos o seguinte trecho: “Como se não bastasse todo o sentimento em relação ao corpo, temos que aguentar a opressão e enfrentar diariamente os olhares esquisitos no banheiro, temos que aguentar nossos nomes desrespeitados e a falta de oportunidades no mercado de trabalho e uma junção disso tudo mata muito”.

O ato do jovem vem se juntar a uma trágica realidade de muitas outras pessoas transgêneros que cometem autocídio em decorrência do desespero, face aos sofrimentos enfrentados devido à sua identidade de gênero. A identidade de gênero é como você pensa a respeito de si mesmo, é o sexo psíquico, aquilo que a criatura sente ao se olhar no espelho. Atualmente, são catalogadas nas pesquisas as identidades: feminina, masculina, nenhuma das duas ou ambas. Convém registrar que transgênero é a pessoa não adequada ao gênero previamente estabelecido ou socialmente atribuído ao nascimento. Não se trata de um conceito rígido, pois não há um modo único de ser transgênero, e engloba travestis, transexuais e queers.

O suicídio é uma causa recorrente de morte da população trans brasileira e faz-se necessário investigar os motivos e discutir estratégias de prevenção. O Espiritismo pode e deve contribuir nesta momentosa questão com os conhecimentos oriundos do intercâmbio mediúnico e as práticas acolhedoras nas instituições espíritas. As campanhas de valorização da vida promovidas nos movimentos espíritas devem trabalhar também as necessidades das minorias, tais as pessoas LGBTTI (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Travestis, Intersexuais). O tema ainda é tabu, mas precisa ser amplamente debatido para contemplar essa população tão discriminada. Ausência de amparos familiar, social e institucional; humilhações; constrangimentos; eis o fardo que pesa às costas dos irmãos transgêneros.

Diante desta perspectiva árida, muitos companheiros fragilizados e abandonados entregam-se às ideações suicidas. Vejamos os dados alarmantes da pesquisa1. “Os Homens Trans no Brasil: as políticas públicas e a luta pela afirmação de suas identidades”, de Roberto Cezar Maia de Souza, da Faculdade de Psicologia Maurício de Nassau: 66,4% dos homens trans afirmaram já ter pensado em suicídio; destes, 41,5% já tiveram pelo menos uma tentativa de suicídio e 28,2% tiveram duas tentativas. Para fazer um paralelo, a população em geral tem o índice de 3% de uma tentativa de suicídio. Estimativas feitas nos EUA pela ONG National LGBTQ Task Force apontam em 41% o índice de pessoas trans que já tentaram suicídio naquele país, contra 1,2% da população cisgênero (aquela que não é trans). Uma pesquisa do Williams Institute (Universidade da Califórnia, Los Angeles) publicada em 2014 estimou em 40% as pessoas trans que já atentaram contra a própria vida. Outra pesquisa da Columbia University (Nova Iorque, Estados Unidos) informa que o índice de suicídio é cinco vezes mais frequente na população LGBTTI.

Os números indicam claramente os efeitos nocivos da transfobia na vida das pessoas transgêneras. A discriminação sistemática baseada na identidade e na expressão de gênero, bem sintetizadas pelo depoimento de Nicholas no parágrafo inicial, produzem consequências desastrosas. Compete ao espírita lúcido e estudioso participar dos esforços e das ações em favor das lutas que dignifiquem a existência dos irmãos que atravessam a experiência trans. Os movimentos espíritas precisam fazer uma autocrítica honesta no tocante ao convívio com a população LGBTTI, pois habitualmente são tratados com desrespeito, isolados ou expulsos dos trabalhos - considerados obsidiados. Figuras famosas e/ou idolatradas na comunidade espírita, movidos por vaidades e aplausos insensatos, pioram a situação ao exprimir opiniões preconceituosas, sem embasamento científico e recheado de moralismo barato.

Todos estes comportamentos revelam ignorância e medo, que estimulam a discriminação, a pesar na carga de dores dos nossos irmãos, afastando-os da frequência aos centros espíritas, locais em que deveria prevalecer o comportamento caritativo a TODOS que lhe busquem o acolhimento. A moral ensinada pelos Espíritos Superiores, exarada nas obras de Kardec, aponta a compaixão e a indulgência como diretrizes de conduta reta. Precisamos melhorar o convívio junto aos irmãos na experiência trans. As pesquisas indicam quantitativamente o que o contato direto e franco com eles revela em detalhes: enfrentam provações acerbas nas variadas formas de rejeição da sociedade e sofrem violências múltiplas (xingamentos, agressões físicas, bullying, dentre outros).

Os movimentos espíritas precisam assumir também responsabilidades na melhoria de condições de vida destes companheiros evolutivos, a começar pelo estudo da sexualidade. Tarefa fundamental e contínua: estudar. Somente o estudo da sexualidade, em especial as questões de identidade de gênero, poderá nos dar condições de abordar o assunto e as pessoas, baseados em conhecimentos científicos produzidos por pesquisadores de diversas áreas (sociais, educacionais, biológicas, psicológicas etc.) dialogando com o material espírita. O passo inicial para superar o preconceito é sair da ignorância que o fundamenta. É necessário promovermos palestras públicas, grupos de estudos, seminários, estudos nas Mocidades, aulas para as crianças e outras tantas atividades nas quais possamos estudar seriamente a sexualidade, para melhor compreensão e aceitação da variedade da experiência sexual humana.

Conhecer para conviver harmonicamente com todos. A sequência natural é a convivência rotineira com os companheiros na experiência trans, sem qualquer diferenciação, até porque não há motivos para tal. Acolher os irmãos transgêneros no mesmo regime de igualdade, de respeito e consideração que devemos apresentar a todas as pessoas que buscam as instituições espíritas. Caso desejem ajuda em suas dores, os trabalhadores precisam se preparar para os acolher dignamente, nas instâncias adequadas (atendimento fraterno, por exemplo), sem deboches, sem discriminações, sem trocar orientações por palpites calcados em estereótipos. Nada de inventar falsas explicações distorcendo ideias espíritas (tipo via fluidos ou perispírito) nem usando livros desatualizados. Ouvir com atenção, acolher com sinceridade, orientar com juízo.

Este conjunto de ações (estudar, conviver, ajudar) servirá de suporte aos companheiros transgêneros no enfrentar dos desafios graves que se lhes apresentam. Encontrando apoio e acolhimento no centro espírita, um irmão transgênero poderá aliviar-se das lutas incessantes e alimentar-se espiritualmente de carinho e boa vontade para aceitar-se e prosseguir vivo, seguir em frente criando significados para a sua existência. Uma verdadeira terapêutica preventiva do suicídio. Os irmãos que estagiam na experiência trans precisam também, como todos nós outros interessados na Doutrina Espírita, de aconchego e orientação, das luzes do Espiritismo para entender a própria encarnação e angariar reflexões e forças. Abraçado pelo grupo espírita, sentirá esse fluxo amoroso a nutrir sua alma, sentirá acolhido e tratado com dignidade, respeitado em sua individualidade, e por isso mesmo mais propenso a querer continuar encarnado. O aspecto Consolador do Espiritismo se define na proposta imortalista e reencarnatória, e deve se efetivar na convivência amorosa e inclusiva dos movimentos espíritas. Contribuiremos muito para a prevenção do autocídio dos transgêneros caso sejamos mais cuidadosos no trato com estas pessoas em nossas atividades.

Precisamos levar a sério as considerações do Espírito Bernardino2: Sim, vossas provas devem seguir o curso que Deus lhes traçou, mas conheceis esse curso? Sabeis até que ponto elas devem seguir, e se vosso Pai misericordioso não determinou ao sofrimento deste ou daquele vosso irmão: “Tu não irás mais longe”? Sabeis se a Providência não vos escolheu, não como instrumento de suplício para agravar os sofrimentos do culpado, mas como bálsamo consolador que deve cicatrizar as chagas que a sua justiça havia aberto? Portanto, quando um de vossos irmãos for atingido, não deveis dizer: “É a justiça de Deus, é preciso que siga o seu curso”, mas sim afirmar: “Vejamos que meios nosso Pai misericordioso colocou ao meu alcance para aliviar o sofrimento de meu irmão. Vejamos se as minhas consolações morais, meu apoio material, meus conselhos poderão ajudá-lo a atravessar essa prova com mais força, paciência e resignação. Vejamos, mesmo, se Deus não colocou em minhas mãos a forma de fazer cessar esse sofrimento; se não foi dado a mim, também como prova ou talvez como expiação, acabar com o mal e em seu lugar colocar a paz”. (Grifos nossos.)

 

Notas:

1 - Realizada em parceria com o Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (IBRAT), a pesquisa contou com 242 pessoas de todas as regiões do Brasil. As informações foram colhidas por meio de um questionário estruturado. A faixa estaria é predominante de 18 a 24 anos (41%), seguida de 25 a 34 anos (24%), 14 a 17 anos (22%), 35 a 49 (9%), 45 a 54 (3%) e mais de 65 anos (1%).

2 – O Evangelho segundo o Espiritismo, capítulo V, item 27.


Referência bibliográfica
:

MOREIRA, Andrei. Transexualidades sob a ótica do Espírito imortal. Belo Horizonte: AME, 2017.

 

Gabriel Lopes Garcia, de Juiz de Fora (MG), é trabalhador voluntário no Instituto de Difusão Espírita da mesma cidade.


 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita