Clássicos 
do Espiritismo

por Angélica Reis


Deus na Natureza

Camille Flammarion

(Parte 45)


 

Continuamos o estudo metódico e sequencial do livro Deus na Natureza, de autoria de Camille Flammarion, escrito na segunda metade do século 19, no ano de1867.


Questões preliminares


A. O fato de adotar as ideias materialistas impede que o indivíduo seja benevolente, justo, moralizado?

Claro que não. Flammarion diz nesta obra haver conhecido homens e mulheres cuja vida podia apontar-se como modelo de moralidade, embora sem crerem na existência de Deus e da alma. Mas faz ele uma ressalva: tais indivíduos não são moralizados por serem cépticos, mas a despeito de o serem. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

B. É possível que haja uma moral independente do Cristianismo ou de qualquer confissão religiosa?

Diz Flammarion não existir dúvida de que possa, sim, haver uma moral independente do Catolicismo, mesmo do Cristianismo e, em geral, de qualquer confissão religiosa. O que ele não acreditava era numa moral independente da ideia de Deus. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Home

C. Que diz Flammarion sobre o trabalho desenvolvido pelo missionário Francisco Xavier?

Primeiro, ele o descreve como o grande missionário das Índias, um jovem de 22 anos, já consagrado professor de Filosofia na Universidade de Paris, que tudo abandonou para acompanhar um amigo. Durante o dia, trabalhava com os marinheiros e aos marinheiros se devotava; à noite, dormia no convés e tinha por travesseiro um rolo de cordoalha. Em Goa, Francisco se encontrava no meio de uma população miserável, sem outra preocupação que a de libertá-la do miasma moral e material. Mais tarde, em prosseguimento de abnegada missão, fundou uma igreja no Cabo. Depois encontramo-lo em Malaca e no Japão, a defrontar novas etnias e novos climas. Toda a sua vida foi um rosário de sofrimentos físicos e de conquistas espirituais. Mas ele a tudo vencia e caminhava avante como que impelido por uma vontade incoercível. “Seja qual for a morte, o suplício que me reservem – dizia –, estou disposto a sofrê-lo mil vezes pela salvação de uma só alma.” (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)


Texto para leitura


817.  Queremos lealmente acreditar que todos os materialistas, em o serem, não se tornem só por isso corrompidos. Conhecemos homens e mulheres cuja vida pode apontar-se como modelo de moralidade, embora não crendo na existência de Deus e da alma. Não, não podemos deixar de confessar que, no seu próprio sistema, essa honestidade é apenas uma questão de temperamento e que, justos e bons, conscienciosos e benevolentes, afetuosos e moralizados, em suma, se praticam a caridade, se não sacrificam ao bezerro de ouro, se preferem a integridade e a pureza de caráter à fortuna ilícita, não é devido ao seu sistema e sim a uma convicção íntima, que os guia a seu talante e protesta contra as suas palavras e a sua filosofia. Sim: não são moralizados por serem cépticos, mas, a despeito de o serem. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

818. Certo, não duvidamos possa haver uma moral independente do Catolicismo, mesmo do Cristianismo e, em geral, de qualquer confissão religiosa. O que não cremos é na moral independente da ideia de Deus. Se só existissem as verdades de ordem física, se místicas fossem as que havemos como de ordem moral, a própria moral não passaria de utopia e a honestidade de mera tolice. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

819. Outras propensões existem, porém, que não procedem da matéria. O homem que passa os dias sofrivelmente trabalhando, ou, antes, que não consome todo o tempo em prover a existência física – diz um grande astrônomo[i] – experimenta necessidades nas quais não intervêm os sentidos, penas e gozos, que nada têm de comum com as misérias da vida. O homem não é sensível somente aos jogos da imaginação, às suavidades dos costumes sociais, mas sim especulativo por natureza. Não contempla o mundo e tudo que o rodeia, passiva e admirativamente, como se fossem fenômenos seriados e apenas dignos de interesse pelas relações que mantêm com ele. Ao revés, considera-os como sistematizados, dispostos e coordenados com desígnio. A harmonia das partes, a sagacidade das combinações, causam-lhe a mais viva admiração. Assim, é levado à conjetura de uma potência, de uma inteligência superior à sua e capaz de produzir e conceber, quanto se lhe depara na Natureza. Infinita, pode chamar a essa potência, de vez que lhe não percebe limite nas obras com que se lhe manifesta. Quanto mais examina, observa, indaga, maiores magnificências descobre e mais grandezas lobriga. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

820. A hipótese materialista exclui todas estas grandezas morais, todas estas altas aspirações e consoladoras esperanças. Diante dos grandes fatos de ordem moral e intelectual, parece-nos haver perdido todo o senso da verdade para subordinar estas virtudes, as “virtudes”, aos movimentos da matéria. Como atribuir a esse predomínio, com Moleschott, que o “homem deva, em parte, o lugar privilegiado na escala zoológica, à faculdade de alimentar-se tanto de vegetais como de carne”? O mesmo vale dizer, com Helvétius, que “o homem só deve à conformação das mãos a superioridade que desfruta em relação aos outros animais”.(Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

821. Como afinar com Spencer nestas declarações: “O que denominamos quantidade de consciência é determinado pelos elementos constitutivos do sangue; vemo-lo claramente na exaltação que se dá quando introduzimos na circulação uns quantos compostos químicos, como sejam o álcool e os alcaloides vegetais”? (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

822. Como compartilhar da opinião de Litré ao declarar que “a vontade é inerente à substância cerebral,assim como a contratilidade o é dos músculos, e que o livre-arbítrio não é mais que simples modalidade do trabalho cerebral”?[ii] (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

823. Como reduzir a proporções da Química e da Física orgânicas, a simples fenômenos de nutrição e assimilação, essas realizações magníficas do gênio e da virtude?(Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

824. Terminando este capítulo, volvamos ao objetivo com que o encetamos e constatemos a inconsequência desses filósofos que imaginam, arrogantemente, ter lançado uma ponte entre o espírito e a matéria, sem perceberem que apenas lançaram seixos no abismo. Descrevem eles o movimento atômico das substâncias, metamorfoses de combinações, processos de assimilação e desassimilação, e pretendem que essas transformações que levam do pulmão ao cérebro uma molécula de ferro, são de molde a explicar claramente a formação do pensamento. Isto posto, não temem acrescentar: – “Temos provas tão certas desta verdade, que uma profissão de fé materialista não deve ser considerada apenas como premissa de grande alcance, nem como arrojada profecia, mas como fruto de uma convicção profundamente enraizada”[iii].(Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

825. Quaisquer que sejam o caráter, o propósito e a persistência de ânimo daqueles de quem aqui temos falado, seus exemplos valem como protesto de afirmações tão insensatas. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

826. Eis aqui o grande missionário das Índias, Francisco Xavier. Sigamo-lo no barco que o transportou às Índias portuguesas, por ordem de D. João 3º, a descer o Tejo, envolvido na sua estamenha remendada e com a só bagagem do seu breviário – ele, o generoso gentil-homem, o sábio de 22 anos, o já consagrado professor de Filosofia na Universidade de Paris, que tudo abandonava para acompanhar um amigo. Durante o dia, trabalha com os marinheiros e aos marinheiros se devota; à noite, dorme no convés e tem por travesseiro um rolo de cordoalha. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

827. Em Goa, ele se encontra no meio de uma população miserável, sem outra preocupação que a de libertá-la do miasma moral e material. Mais tarde, em prosseguimento de abnegada missão, ei-lo a descer as costas de Comorim e fundando uma igreja no Cabo. Depois encontramo-lo em Malaca e no Japão, a defrontar novas etnias e novos climas. Sabemos que toda a sua vida foi um rosário de sofrimentos físicos e de conquistas espirituais. Fome, sede e torturas inauditas barraram a senda do peregrino da fé. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

828. Tudo vencia, porém, e caminhava avante como que impelido por uma vontade incoercível. “Seja qual for a morte, o suplício que me reservem – dizia –, estou disposto a sofrê-lo mil vezes pela salvação de uma só alma.” (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

829. A febre e a morte detiveram-no nas fronteiras da China. Em face de exemplos como este, que se poderia concluir das teorias do feijão, das ervilhas e lentilhas? Em que, como e quando o regime alimentar teria governado a alma do apóstolo? Teria ele encontrado nessas regiões desconhecidas aquela balança metódica que se oferece ao cidadão e que o capitalista preguiçoso pode encomendar ao seu Vatel? (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.) (Continua no próximo número.)


 

[i] Discurso en the Study Natural Philosophy, by J. F. W. Herschel.

[ii] Dictionaire de Nysten, article Volonté.

[iii] Moleschott – Circulation de la Vie, t. 2º, página 57.

 


 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita