Clássicos 
do Espiritismo

por Angélica Reis


Deus na Natureza

Camille Flammarion

(Parte 42)


Continuamos o estudo metódico e sequencial do livro Deus na Natureza, de autoria de Camille Flammarion, escrito na segunda metade do século 19, no ano de 1867.


Questões preliminares


A. Os atos de virtude, o devotamento, a piedade filial são oriundos das disposições orgânicas da pessoa?

Segundo os adeptos do materialismo, sim. Ao negarem a alma, dão eles ao organismo – instrumento inteiramente passivo – atribuições e competências que não são capazes de compreender nem explicar. Como diz Flammarion, é a escórias míseras, assim, que reduzem as mais ricas gemas da coroa que cinge a fronte da Humanidade. Esta, contudo, não se deixa assim degradar, não consentirá que mãos profanas lhe arrebatem a sua auréola. Para sustentar esses feitos de valor, algo mais se torna preciso do que uma agregação atômica de carbono ou de ferro. Algo mais que uma simples combinação molecular. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

B. Defender semelhante ideia não é o mesmo que considerar a criatura humana um mero robô, sem vontade própria, sem mérito nem responsabilidade pelo que faz?

Claro. Diante da concepção materialista da vida, as faculdades mentais, o valor moral, a potência intelectual, o afeto profundo dos corações, o entusiasmo das almas fervorosas, a imensidade do olhar inteligente, as descobertas, as obras-primas da Ciência e da Poesia – tudo isso se deve à matéria e não ao ser inteligente que a comanda. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

C. Ao negarem a existência da alma, os adeptos do materialismo negam também a existência do livre-arbítrio?

Sim. Os adversários do espiritualismo o negam absolutamente e proclamam que todas as realizações humanas são o resultado necessário de causas ou ensejos emergentes à revelia de reflexão, e sem que esta lhes possa mudar o curso. O pensamento não é mais que movimento físico da substância cerebral. Esse movimento procede do sistema nervoso, afetado, a seu turno, por um movimento exterior. O movimento pensante, por sua vez, reage sobre os nervos e músculos e determina os atos. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)


Texto para leitura


770. Quantas almas padecem em segredo sem revelar os seus martírios, curvadas à injustiça, vítimas do destino, dessa fatalidade impenetrável que persegue tantas criaturas boas e justas? Quantos corações magnânimos palpitam em silêncio e abafam chamas capazes de incendiar o verbo e levantar multidões, se, ao invés de definhar na sombra, se espanejassem ao sol da popularidade? Quantos gênios ignorados por aí dormitam num isolamento infecundo? Quantas almas santas e puras, a consagrarem-se a uma vida inteira de abnegação, de amor, de caridade? E quantos, em recompensa de tamanhas virtudes, de tanta paciência e humildade, não recebem mais que ingratidão e desprezo daqueles mesmos a quem amam? (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

771. O último refúgio dos nossos adversários assenta no sistema dos pendores naturais, como a declararem que estes fatos de ordem mental não são mais que o resultado das inclinações dos espíritos credores da nossa admiração. Se Palissy se obstinou dezesseis anos à procura do esmalte, seria a isso arrastado por uma inclinação especial. Se Colombo não esmoreceu diante do cepticismo dos coevos e das revoltas de sua equipagem, é que uma tendência do seu cérebro o encaminhava irrevogavelmente para o Novo Mundo. Se Dante concluiu a Divina Comédia, ainda que posto a ferros e expatriado, é porque a lembrança de Beatriz e as guerras civis italianas lhe espicaçavam a fibra poética. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

772. Se Galileu, septuagenário, se viu constrangido a repudiar de joelhos as suas convicções mais íntimas, assinando a sentença iníqua que proibia a Terra de girar, não pensem que houve em tudo isso humilhação, pois apenas teria experimentado uma ligeira contrariedade das suas inclinações. O fato de Carlota Corday partir da sua aldeia para apunhalar Marat em Paris não significa que tivesse a convicção íntima de salvar a pátria de um seu presumido salvador, mas, apenas, que tivesse uma exaltação cerebral. Se, durante as cenas monstruosas do terror, viram-se mulheres que pediam ao carrasco a graça de morrer com os maridos, subindo firmes o patíbulo; se, em todos os tempos históricos, temos visto vítimas voluntárias oferecendo-se para salvar entes amados, ou com eles morrer, é tudo fruto de inclinação natural, ou resultado de certos movimentos cerebrais! (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

773. Resumindo: os atos mais sublimados de virtude, de piedade filial, devotamento, amor, grandeza d'alma, são oriundos de disposições orgânicas, ou de qualquer súbito desvio das funções normais do cérebro. Se o Cristo subiu ao Calvário, não se considere isso o sacrifício extraordinário de um ser divino, mas simples movimento revolucionário de algumas moléculas imprudentes. É a escórias míseras, assim, que reduzem as mais ricas gemas da coroa que cinge a fronte da Humanidade. Esta, contudo, não se deixa assim degradar, não consentirá que mãos profanas lhe arrebatem a sua auréola. Para sustentar esses feitos de valor, algo mais se torna preciso do que uma agregação atômica de carbono ou de ferro. Algo mais que uma simples combinação molecular. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

774. Predisposições orgânicas, inclinações naturais, faculdades mentais, a própria educação, que representa tudo isso senão palavras, desde que nos limitemos a manifestações da matéria bruta e cega e neguemos a existência do espírito? Que representam a Química, a Física, a Mecânica, diante da vontade que dobra o mundo à sua lei e dirige a seu nuto a matéria obediente? Ousam sustentar que o valor moral, a potência intelectual, o afeto profundo dos corações, o entusiasmo das almas fervorosas, a imensidade do olhar inteligente, as pesquisas do pensamento que sonda o espaço e faz esplender as leis universais, as meditações, as descobertas, as obras-primas da Ciência e da Poesia se explicam por transformações químicas – e quiméricas – da matéria em pensamento? (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

775. Será que, para suportar essa energia anímica, não haja necessidade de uma força soberana, superior às alterações da substância, capaz de vencer todos os obstáculos, cuja influência se estenda muito além da vista física e seja mesmo a base desta força pensante, seu substrato, seu sustentáculo e condição de sua potência? Será que a virtude resida noutro lugar que não na alma? – na alma independente, que as tergiversações do mundo material não atingem; na alma espiritual, que ouve a voz da verdade e caminha em reta para o seu ideal, sejam quais forem os óbices que se interponham no caminho, as dificuldades que pretendam interceptar-lhe a marcha triunfal? (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

776. Toda a Humanidade protesta contra essas fúteis alegações e o faz não já com aquele critério baseado no testemunho dos sentidos, suscetível de enganar-se, como se dá, por exemplo, com o movimento dos astros, mas, com aquele senso íntimo que lhe vem da própria consciência. A nacionalidade, o clima, a natureza dos alimentos, a educação, não bastam para constituir caracteres inteligentes e indômitos! No caráter humano a energia é, realmente, o poder central, o eixo da roda, o centro de gravidade. Só ela dá impulsão aos atos. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

777. Essa força mental é a base mesma e a condição de toda a esperança legítima, e se é verdade que a esperança é o perfume da vida, o poder mental há de ser a raiz dessa planta preciosa. Ainda mesmo que as esperanças se desvaneçam e a criatura sucumba nos seus esforços, resta-lhe a satisfação de haver trabalhado para vencer e, sobretudo, que, longe de ser escrava da matéria, manteve-se fiel às regras por vezes árduas, que a honestidade impõe. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

778. Haverá espetáculo mais belo e digno de elogios que o de um homem a lutar energicamente com a sorte, a demonstrar que lhe palpita no seio uma força imperecível, a triunfar pela grandeza de caráter e a prosseguir corajoso e resoluto, ainda “quando lhe fraquejam as pernas e sangram os pés”? (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

779. Em sentido menos generalizado que o destes grandes fatos precedentes, temos visto exemplos particulares de vontades poderosas realizando milagres. Nossos desejos são, muitas vezes, os precursores da capacidade de realização, bastando intensificá-los para que a possibilidade se resolva em realidade. Se de um lado as vontades de um Napoleão e de um Richelieu riscam dos dicionários a palavra impossível, por outro lado existem os vacilantes, a quem nada se afigura possível. “Saiba querer energicamente – dizia Lamennais a um espírito enfermo –, fixe a sua vida flutuante e não se deixe levar por todos os ventos, qual folha murcha desgarrada do tronco.” (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

780. Pessoalmente, temos conhecido criaturas exaltadas que, depois de terem estado com um pé na sepultura, recuaram de espanto ante o esplendor da vida que pretendiam abandonar e resolveram conservá-la. Estes exemplos são raros, e só possíveis quando o corpo não esteja tocado pela mão da morte. E, no entanto, existem. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

781. Os fastos militares oferecem-nos o exemplo de vários chefes que, velhos ou enfermos, em ouvindo no instante decisivo da batalha que seus comandados desertavam, atiravam-se para fora da barraca, os reuniam e conduziam à vitória, para logo após tombarem exaustos e exalarem o último suspiro. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

782. Não somente a vontade, mas também a imaginação domina a matéria, contradiz o testemunho dos sentidos e origina, às vezes, ilusões absolutamente alheias ao domínio físico. Expliquem como pode morrer um homem quando, com uma simples picada, os médicos lhe sugerem que o sangue escorre da veia rasgada. (Este e outros fatos estão judicialmente averiguados.) Que nos expliquem como a imaginação cria um mundo de quimeras, que atuam ativamente no organismo e se refletem na saúde. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

783. Ao demais, tão forte e autônoma é a vontade, as influências ambientes tão precárias se afirmam, para explicar a marcha da vida intelectual, que, as mais das vezes, não na embaraçam e, ao contrário, nos induzem a proceder com energia tanto maior, quanto mais prementes são os obstáculos que se nos deparam. Todos quantos se votam a tarefas intelectuais dirão conosco que a fase em que mais operaram em sua carreira foi precisamente a de maiores dificuldades na vida prática e que a vontade é qual os rios que seguem destruindo e vencendo os acidentes do seu curso, não obedecem a barragens e até se encrespam e se precipitam mais impetuosos, quanto mais sólida e alta a muralha que se lhes opõe. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

784. Quando sucesso e glória vêm coroar nossos trabalhos e após uma faina longamente sustentada a reação vem convidar-nos ao repouso e já o fogo da inspiração não nos acende auroras na mente. O trabalho pessoal da vontade é a condição sine qua non do nosso progresso. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

785. Em um discrime acerca da existência da vontade, a questão assaz longa e baldamente controvertida do livre-arbítrio não pode ficar sem o seu ponto de interrogação. Os adversários o negam absolutamente e proclamam, qual vimos e suficientemente comentamos, que todas as realizações humanas são o resultado necessário de causas ou ensejos emergentes à revelia de reflexão, e sem que esta lhes possa mudar o curso. O pensamento não é mais que movimento físico da substância cerebral. Esse movimento procede do sistema nervoso, afetado, a seu turno, por um movimento exterior. O movimento pensante, por sua vez, reage sobre os nervos e músculos e determina os atos. Em toda esta sucessão não há movimentos materiais transmitidos. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

786. Eu imagino de bom grado o encontro de um cristão com um discípulo de Holbach no desvão de uma dessas oficinas, cuja portada se protege com a clássica estatueta de Hipócrates travando o seguinte diálogo: – É facílimo demonstrar que o pensamento é produto da matéria – dirá o holbaquiano –. Eis, por exemplo, uma locomotiva que se precipita veloz ao vosso encontro. A visão da locomotiva ou, para falar fisicamente, o raio luminoso partido dessa máquina atinge o vosso globo ocular e provoca um dado movimento distensivo do nervo ótico... Por intermédio desse mesmo nervo o movimento se transmite ao cérebro. Depois, o movimento cerebral, tornando-se causal, por sua vez aciona os nervos correspondentes às pernas e estas entram a correr e a levar-vos fora da linha. Evidente, pois, que em tudo isso não utilizastes uma partícula de liberdade qualquer. Vossa atitude derivou, necessariamente, da impressão visual da locomotiva. – Mas, perdão – retrucará o outro –, e se eu, por um capricho de suicida, aliás comum, tivesse deliberado permanecer na linha até que a locomotiva me esmagasse? Não praticaria dessarte um ato voluntário e de livre-arbítrio? (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)


 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita