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por Mariângela Alonso

 

O caminho das videiras


Ela passou por baixo da parreira e logo avistou um cenário harmonioso com muitas casas, todas com paredes brancas e janelas azuis no estilo colonial, cercadas por plantações de arroz. Roseiras, papoulas, girassóis e tulipas, flores de todos os climas e lugares completavam o plano. Com o fio de prata ao redor de si viu que mais à frente havia uma ponte tão maravilhosamente cromática e vaporosa que imediatamente se lembrou da tela A ponte de Langlois em Arles, de Van Gogh, e da película Sonhos, de Akira Kurosawa... o lugar era propício.... Se bem que este não era bem um lugar, mas uma suspensão no tempo. Como fora difícil amontoar tudo dentro do coração até aquele momento! Por que tinha de ser assim?

Curiosa, dirigiu-se ao japonês que trabalhava concentrado na colheita. Reticente, remexendo dados de seu passado, decidiu perguntar:

– Bom dia... Sabe me dizer qual destas casas é a de L. A?

O homem coçou a cabeça, espremendo bastante os olhos para responder:

– L. A?... Ahhhh! deve ser o novo morador, que chegou no dia nove de março!

– Sim.

– É logo ali, segunda casa à direita, depois da ponte.

Ela caminhou hesitante. Nove meses tinham se passado. Como ele estaria? Perdera a autenticidade ou esta continuara a existir no novo estado? E o sorriso? Haveria sorrisos no novo espaço ou a vida a partir dali seria feita de espasmos? Não sabia o que pensar.

À medida que avançava, a ponte se afunilava rumo às águas do rio. O que estava acontecendo? Voltou a cabeça na direção do japonês e viu que este desaparecera. O tempo era de desaparecimentos e novas construções.

Quantas lembranças despendiam-se daquela ponte! A velocidade de sua caminhada aumentava, alternando-se com as descidas e subidas daquele balançar. De repente, a segunda casa foi ficando cada vez mais próxima para ela. Só ela sabia e sentia, ninguém mais.

Ao alcançar o outro lado, percebeu que as habitações eram estruturalmente simétricas e imponentes à luz do sol. As vias eram traçadas conforme a disposição das casas em meio às plantações de arroz. Nenhum portão ou cercamento, porque não havia necessidade deles. Aquelas moradas pareciam preservar em seus cômodos os escombros mais recônditos de um passado estranhamente familiar para ela.  

Parou diante da casa que pertencia a L.A, cuja fachada majestosa ostentava um belo perfil de estuque, com vários rebordos alinhados por ornamentos antigos. A topografia era vencida por uma porta frontal e duas janelas grandes, azuis como nas outras casas.  

A sensação era de lar acolhedor e ela se aproximou, abrindo com cuidado a porta.  Parada, com a mão ainda sobre a maçaneta foi observando cada objeto do espaçoso cômodo. A curiosidade aumentara e ela pôde notar o espelho em moldura dourada no centro da parede; na mesma direção encontrava-se a janela com cortinas brancas, um tapete, um sofá e duas cadeiras de jacarandá, adornadas com pregarias. Pendurado numa das paredes havia ainda um relógio cuco sem os ponteiros.

Ela enfim entrou e o avistou no canto próximo à mesa cheia de candelabros. Notou que ele limpava atenciosamente cada um daqueles castiçais, lustrando-os com um pano fino e alvo. Estava vestindo calça azul e camisa branca, o que parecia somar-se harmoniosamente com toda a disposição cromática do local. Parou o que estava fazendo e fitou-a como se já a estivesse esperando, com um sorriso terno de aprovação.

O fio de prata que a envolvia fora brevemente afastado para que o abraço pudesse acontecer. Foi quando sentiu reavivar na memória todo o passado: a pele morena, o cabelo preto e os lábios finos de L.A.. Ele estava intacto. Como era possível? Depois de nove meses? O novo estado contava com reparações... só podia ser isso.

Ele a abraçou de lado como as pessoas fazem ao posar para as fotografias. Por que agora o abraço deveria ser assim, de lado? E por que toda a pressa dele se o cuco estava sem os ponteiros?  E como o instantâneo de uma câmera fotográfica aquele momento ficaria para sempre na memória, entrelaçado no cotidiano febril de muitas escolhas que ainda estavam por vir. O abraço registrava a dilatação de um momento que nunca mais seria modificado.

Ela não compreendia que os laços fluídicos, espécies de fios condutores das almas aos corpos ainda ligavam L.A. aos invólucros terrestres do antigo estado, de modo que poderia transmitir impressões e valores captados por ela. Mas L.A. apressou-se em dizer, em tom de alerta, que teriam de ser breves, pois o tempo dele não era mais compatível com o dela, que, por sua vez, deveria retornar o mais rápido possível.

Segundo L.A. ela precisava se acalmar, olhar a vida sem medo e acreditar no que vinha se ocupando, ou seja, concentrar-se na reforma da casa, pois não era fácil lidar com construções... Havia sempre gastos, contratempos e descompassos até que a tal casa ficasse pronta lá no outro lado. Além disso, a vida teria de continuar para frente, para cima, para os lados, mas jamais para trás, etc., etc., etc....

Esta casa, por exemplo... demorou para ser construída e posteriormente reformada. Cada tijolo aqui utilizado representa um degrau e um sentido para o todo de sua arquitetura. Por isso, reflita bem sobre o que tem feito com os tijolos de sua casa.

Ela se esforçava para ouvi-lo, uma vez que sua voz ia ficando cada vez mais baixa e vaporosa, misturada que estava com o canto ensurdecedor dos pássaros lá de fora. As cortinas da sala começaram a dançar apressadas com o vento que vinha lá de fora. Era o sinal de despedida para L.A.:

– Agora vá. Você deverá seguir o mesmo caminho daqueles dois, sempre pelas videiras.

Ela se voltou para a janela e avistou um casal de jovens que realmente passavam por debaixo da parreira. Sorridentes, eles se abraçavam e se beijavam, sem notar que ela os observava.

O clarão da sala ainda permitiu que olhasse para o piso de assoalho resistente, com frisos estriados. Foi quando atentou que entre eles havia uma série de pequenas faixas, as quais se distribuíam em vários grupos, marcando repartições no chão. Uma das faixas parecia prolongar-se, aumentando a divisão entre ela e L.A. naquele cômodo. Mero detalhe? Mera divisória? Não para quem em breve constataria que, ao sensível, o inteligível se colocava, impondo uma divisória. Como o tempo era de suspensão, o inteligível permaneceria, pois se configurava eternamente como realidade estável.  

De repente, ela sentiu que as pulsações do fio de prata começavam a arrefecer, em sinal de que deveria se despedir e retornar.  Com dificuldade, apalpou a própria nuca e com medo percebeu que alguns filamentos energéticos começavam a se distender, perdendo-se do feixe ligado a seu corpo. Uma força desconhecida paralisava seus movimentos, mantendo-a ligada a L.A.. Com dificuldade de respirar, ela conseguia apenas mover os olhos para todos os lados da sala, porém, não podia movimentar o corpo. Então, o desespero a tomou... E agora? Como faria para voltar? Não poderia ficar ali, seu tempo já estava terminando.

Sentiu que possuía um coração conectado ao de L.A., mesmo estando certa de que ele ficaria para sempre do outro lado. Embora o abraço tenha sido diferente, o olhar permanecia amigável e do lado dela. Finalmente, como se já soubesse a resposta, inquiriu com voz cava:

– Pai, você não vem comigo?

Nesse momento um feixe de raios luminosos cruzou a extensão da sala, tornando-a ainda mais clara e luzidia, tal como nas histórias infantis, em que as fadas resvalam pelos raios de luz. O plexo solar sinalizava perigo, uma vez que os filamentos nervosos continuavam a romper do cordão de prata como num cabo elétrico. Era o tênue limite e ela experimentava forte sensação de resistência. Em vão tentou esticar os braços na direção de L.A. para indicar o seu suplício, mas, sem força, desistiu. As fronteiras seriam quebradas?

Então L.A. deu como resposta um gesto negativo e demorado com a cabeça. Dirigindo o olhar sereno para a janela parecia reafirmar a necessidade do encontro dela com o atalho das videiras. Conservando-se vigilante, era certo que não viria.

O gesto foi o bastante para que ela se afastasse, se afastasse, se afastasse tanto que, quando viu, já estava no destino calculado, quase se esbarrando com o casal embaixo das videiras. Ainda apreensiva, teve a certeza de que estava no caminho certo. Era o retorno da viagem flórea e luminosa para a vida real.

Já em nova dimensão vibratória, ela finalmente se certificou de que o cordão de prata permanecia ligado ao seu corpo para o prosseguimento da experiência na Terra. Era preciso continuar!

Acordou ofegante, acendendo a luz do quarto da casa interiorana de paredes amarelas e quadros vintage. Já era tempo de vestir o uniforme e sair para o trabalho. Na volta contrataria os pedreiros para a reforma e assim pensaria no que fazer de seus tijolos.

 


Mariângela Alonso é doutora em Estudos Literários pela UNESP e pós-doutora pela USP. É autora dos livros Instantes líricos de revelação: a narrativa poética em Clarice Lispector (São Paulo: Annablume, 2013) e O jogo de espelhos na ficção de Clarice Lispector (São Paulo: Annablume, 2017). É docente de Literatura Brasileira e Teoria Literária da Universidade Estadual do Norte do Paraná. E-mail: malonso924@gmail.com.

        


 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita