Clássicos
do Espiritismo

por Angélica Reis

Deus na Natureza

Camille Flammarion

(Parte 29)


Continuamos o estudo metódico e sequencial do livro Deus na Natureza, de autoria de Camille Flammarion, escrito na segunda metade do século 19, no ano de 1867.


Questões preliminares


A. A superioridade do homem em relação às outras espécies reside em nossas faculdades intelectuais?

Sim. “O corpo humano – diz o naturalista inglês Wallace –, estava nu e desprotegido e foi o espírito que o provisionou de vestes, para preservá-lo das intempéries. O homem não teria podido competir em agilidade com o gamo, em força com o touro selvagem, e foi o espírito que lhe deu armas para domar e utilizar esses animais. Ele era menos apto que outros animais para alimentar-se de ervas e frutos, que a Natureza espontaneamente oferecia, e foi essa faculdade admirável que lhe ensinou a governar e adequar a Natureza aos seus fins, dela extraindo o alimento, quando e onde quer. Desde o instante em que utilizou a primeira pele na indumentária, a primeira lança na caçada, a primeira semente no plantio, o primeiro tronco na enxertia, uma grande revolução se operou na Natureza, revolução que não tivera símile em qualquer fase da história do mundo.” (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

B. É correto dizer que a Humanidade é muito mais antiga do que as religiões ensinam?

Sim. A Humanidade é muito mais antiga do que se supôs até agora, tendo começado por graus inferiores, antes que se elevasse à noção de justiça e de moral. Preferimos confessar essa ancianidade e essa possível origem da nossa espécie, sem escrúpulos para com o Espiritualismo e sem acompanhar o mau exemplo dos que intrometem as crenças religiosas a propósito de tudo, e mesmo sem propósito. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

C. Sobre a aparição do primeiro casal humano, que diz a Ciência?

A Ciência não admite de bom grado a aparição miraculosa do primeiro casal humano. Diz Carlos Lyell que “se a fonte original da espécie humana tivesse sido realmente dotada de faculdades intelectuais superiores de natureza perfectível, como a de sua posteridade; se a Ciência lhe tivesse sido inspirada, o progresso atingido seria simplesmente muito mais expressivo. No curso dos evos teria havido tempo de realizar conquistas inimagináveis e os mais diferentes caracteres teriam sido impressos nos utensílios que ora procuramos interpretar”. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)


Texto para leitura


535. Declaremos, antes de tudo, que a primeira característica do homem é a sua inteligência. Portanto, o seu lugar filosófico não se enquadra nas classificações da História Natural. Por sua perfectibilidade, que se poderá atribuir à linguagem, pela inteligência racional, por suas faculdades espirituais, em suma, o homem domina toda a Natureza terrestre. Seu espírito não incide nos domínios do escalpelo. Seu valor não se afere pelo corpo, pelo esqueleto, pelo fígado ou pelos rins, mas, pelo seu caráter intelectual. Descenda, pois, de uma ou de outra fonte o nosso corpo, isso em nada nos afeta a alma. O mundo da inteligência não é o mundo da matéria. Não somos menores por isso, nem menos puros. Somente por estreiteza de espírito é que intermitimos na filosofia psicológica imaginários temores, suscitados pela ciência zoológica. Se nosso berço terrestre fosse a manjedoura de rústico estábulo, qual o de Jesus, nem por isso nossa vida e nossa missão seriam menos santas e altanadas. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

536. A superioridade está em nossas faculdades intelectuais. “O corpo humano – diz o naturalista inglês Wallace –, estava nu e desprotegido e foi o espírito que o provisionou de vestes, para preservá-lo das intempéries. O homem não teria podido competir em agilidade com o gamo, em força com o touro selvagem, e foi o espírito que lhe deu armas para domar e utilizar esses animais. Ele era menos apto que outros animais para alimentar-se de ervas e frutos, que a Natureza espontaneamente oferecia, e foi essa faculdade admirável que lhe ensinou a governar e adequar a Natureza aos seus fins, dela extraindo o alimento, quando e onde quer. Desde o instante em que utilizou a primeira pele na indumentária, a primeira lança na caçada, a primeira semente no plantio, o primeiro tronco na enxertia, uma grande revolução se operou na Natureza, revolução que não tivera símile em qualquer fase da história do mundo, de vez que um ser existia forrado às mutações do Universo; um ser, até certo ponto superior à Natureza, pois possuía os meios de controlá-la, de lhe regular as atividades, e podendo manter-se em harmonia com ela, não modificando a sua forma corporal, mas aperfeiçoando o seu espírito.” Nisso é que vemos, unicamente, a verdadeira grandeza e dignidade do homem.[i] (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

537. O lugar anatômico do homem ocupa graus superiores ao em que se assenta o chimpanzé; a diferença entre os cérebros do homem e do primata não é maior que a que separa o chimpanzé do saju e, sobretudo, dos lemurianos. Depois do chimpanzé (trogloditas) vêm, na ordem decrescente, o orango (pitécus), o gibon (hilobatos), o seninopíteco, o bugio etc. Tal como escreveu Geoffroy Saint-Hilaire em polêmica célebre com Cuvier, o homem é a primeira família da ordem dos primatas, estabelecida por Linneu no século passado. Aqui, cabe dizer que falamos do ponto de vista anatômico, unicamente. Qualquer outro raciocínio invalida as classificações precedentes. Somos, porém, de opinião que, quando se faz anatomia, é preciso fazer a anatomia. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

538. O lugar geológico do homem recua a origem de nossa espécie à época longínqua em que viviam as raças antediluvianas, hoje desaparecidas: o veado de grandes chifres, o urso das cavernas, o rinoceronte ticórnis, o elefante primigêneo, o mamute, a rena fóssil etc. A mais antiga data conhecida e atestante da presença do homem é muito posterior à fauna e flora atuais. Entretanto, verifica-se não existirem já, em nossos dias, umas tantas espécies contemporâneas do homem. Os fósseis humanos encontrados nos arrecifes coralíneos da Flórida, nas cavernas do Languedoc e da Bélgica, o esqueleto exumado nos arredores de Dusseldorf, o crânio da caverna de Êngis, o de Barreby, na Dinamarca, o homem fóssil de Puy e de Natchez, no Mississipi, os restos humanos em Loes, indiciam nas variedades humanas primitivas um estado de manifesta inferioridade, aproximando-as singularmente dos selvagens contemporâneos e mesmo dos símios antropoides. Hoje ninguém contesta a existência do homem anterior ao período glaciário e desde o começo da época quaternária. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

539. O lugar arqueológico do homem concorda com os precedentes, a favor da teoria progressiva. Quem duvidaria, hoje, da idade da pedra e do bronze, pelas quais transitou a Humanidade antes que inventasse qualquer arte ou indústria, cujos vestígios se encontram por toda a parte? Que ancianidade poderíamos atribuir a esses períodos? A idade da pedra, na Dinamarca, coincidia com o período da primeira vegetação, seja a dos pinheiros da Escócia, e, em parte, com a segunda vegetação – a do carvalho. A idade do bronze desenrolou-se durante a época do carvalho, pois foi nas camadas da turfa, onde abunda o carvalho, que se encontraram espadas e escudos desse metal. Antes dele não havia faias. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

540. A idade do ferro, menos prístina, corresponde à bétula. Quanto tempo duraria a primeira idade? Sendo o bronze um composto de mais ou menos nove partes de cobre e uma de estanho, o aparecimento dos primeiros utensílios denota uma indústria não já elementar. A fusão dos minerais, a decoração lenta dos objetos moldados, só poderiam ser conseguidas depois de longos tateamentos. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

541. A que época devemos atribuir as cidades lacustres da Suíça e as quarenta mil estacas de Wangen? As escavações nos têm revelado vinte povoações no lago de Genebra, doze no de Neufchâtel, dez no de Bienne, contemporâneas das idades da pedra e do bronze. As da Irlanda (Crammoges) parecem provir da mesma época. Essas povoações castoreanas deviam oferecer alguma semelhança com as da Nova-Guiné, descritas por Dumont d’Urville. Os ossos encontrados por Lartet na caverna de Aurignac são contemporâneos das hienas das cavernas e do rinoceronte de narinas separadas. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

542. Foi muito tempo depois que Tebas e Mênfis, capitais do alto e baixo Egito, atingiram o seu grande esplendor e que as quarenta pirâmides foram erigidas, tipificando uma civilização lentamente desenvolvida, com uma forma especial de culto, de cerimônias esplêndidas, um singular estilo de arquitetura e inscrições, barragem de rios etc. Essas glórias, entretanto, estavam desvanecidas muito tempo antes de Homero. “Foi preciso – diz Lyell – para formação lenta e gradual de raças como a caucásica, a mongol ou a negra, um lapso de tempo bem mais longo que o possível de ser abrangido por qualquer sistema de cronologia popular.” (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

543. Ao problema cronológico do aparecimento do homem na Terra, a Ciência nada responde por enquanto. Demais, se o homem não apareceu espontaneamente, tal data não existe. Quanto aos vestígios de humanidade, ou do homem em si mesmo, as opiniões (pois que se não trata, no caso, senão de opiniões) são vagas quão variáveis. Um tijolo de carvão encontrado entre Assouan e Cairo, a uma profundidade de 18 metros, contaria treze mil anos de existência, admitindo-se um aumento de 15 centímetros por século, no depósito de vasa, no delta do Nilo. A estimativa mais baixa do prazo necessário a formar o delta do Mississipi é de cem mil anos. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

544. O esqueleto humano encontrado perto de Nova-Orleans, a 5 metros de profundidade e sob uma camada de quatro florestas extintas, não contaria menos de cinquenta mil anos, na opinião do Dr. Dower (é uma cifra exagerada, ao nosso ver). Agassiz calculou que a formação dos recifes de coral da Flórida representa cento e trinta e cinco mil anos. Os sílex talhados e recolhidos em diversas regiões do globo, particularmente no vale do Somme, parece terem servido de armas a uma raça distanciada de cem séculos. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

545. A Arqueologia concorda com os historiadores e poetas da antiguidade, quais Heródoto, Diodoro, Éschylo Vitrúvio, Xenóphontes, Plínio, no concernente ao primitivismo bárbaro da raça humana e à sua predileção pelas cavernas. Mas esse estado nós o podemos considerar fora dos domínios históricos e a cronologia, que remonta à época já misteriosa das grandes migrações arianas, a mais de cem séculos pretéritos, mergulha em noite profunda, quando tenta sondar a nossa verdadeira origem. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

546. Tudo quanto podemos afirmar é que a Humanidade é muito mais antiga do que se supôs até agora, tendo começado por graus inferiores, antes que se elevasse à noção de justiça e de moral. Se nos fora permitido remontar a essas épocas, não poderíamos reconhecer a civilização da nossa era na caligem das idades bárbaras, quando a inteligência em seus primórdios esforçava por desprender-se das possantes constrições da matéria. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

547. Preferimos confessar essa ancianidade e essa possível origem da nossa espécie, sem escrúpulos para com o Espiritualismo e sem acompanhar o mau exemplo dos que intrometem as crenças religiosas a propósito de tudo, e mesmo sem propósito. Constatamos os fatos e a nossa ignorância, com sincera franqueza, persuadidos de que, não se podendo antepor duas verdades entre si, a Ciência da Natureza não pode afetar a causa do Ser supremo. Como diz Helmholtz, os homens costumam medir a grandeza e a sabedoria do Universo pela duração e vantagem que daí lhes advêm; mas a história dos séculos transcorridos nos mostra quão insignificante é o período do advento da existência humana, em relação com a idade do planeta. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

548. A Ciência não admite de bom grado a aparição miraculosa do primeiro casal humano. Diz Carlos Lyell que “se a fonte original da espécie humana tivesse sido realmente dotada de faculdades intelectuais superiores de natureza perfectível, como a de sua posteridade; se a Ciência lhe tivesse sido inspirada, o progresso atingido seria simplesmente muito mais expressivo. No curso dos evos teria havido tempo de realizar conquistas inimagináveis e os mais diferentes caracteres teriam sido impressos nos utensílios que ora procuramos interpretar. Nos areais de Saint-Acheul, como na porção de leito do Mediterrâneo aflorada nas costas da Sardenha, ao invés da mais grosseira cerâmica e dos sílex de feitura tão defeituosa e incompleta, que mal indiciam ao observador bisonho um esforço manual voluntário, encontraríamos esculturas superiores às obras-primas de Fídias e Praxiteles, caminhos de ferro e telégrafos nos quais os nossos engenheiros colheriam inestimáveis apontamentos; microscópios e telescópios aperfeiçoados como os não conhecemos na Europa e inúmeras provas, outras, de perfeição artística e científica, que o nosso século 19 ainda não logrou testemunhar. Em vão esgotaríamos a imaginação para adivinhar a utilidade de relíquias que tais. Talvez maquinaria de locomoção aérea ou destinada a cálculos aritméticos, aparelhos desproporcionados às necessidades e quiçá à concepção dos matemáticos vivos.” (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.) (Continua no próximo número.)

 

Glossário:

Bétula: planta betulácea típica. = VIDO, VIDOEIRO.

Caligem: fumo negro, nevoeiro cerrado, escuridão.

Faia: árvore fagácea ou castaneácea.

Prístina: [Linguagem poética] anterior, antiga, prisca.

Saju: macaco do Brasil que exala um cheiro de almíscar.

Vasa: fundo lodoso de rio, lago ou mar; limo, lodo, lodaçal.

 


 


[i]  Grandes homens contemporâneos não compartilham destas ideias e consideram a Humanidade como uma raça degenerada. Permitimo-nos citar aqui como exemplos, que o Sr. Cousin, com quem conversamos ao iniciar esta obra (1865), sustentava essa opinião e o Sr. de Lamartine, a quem propuséramos a mesma questão quando corrigíamos estas provas (1867), encara as raças arianas como tendo sido superiores à sociedade atual. O problema ainda está longe de solução, mas a verdade é que nem por isso a característica do homem deixa de consistir na sua inteligência progressiva.

 

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita