Clássicos
do Espiritismo

por Angélica Reis

Deus na Natureza

Camille Flammarion

(Parte 26)


 

Continuamos o estudo metódico e sequencial do livro Deus na Natureza, de autoria de Camille Flammarion, escrito na segunda metade do século 19, no ano de1867.


Questões preliminares


A. Apesar de todas as teorias e pesquisas levadas a efeito, a tese da geração espontânea ainda encontrava partidários quando Flammarion escreveu esta obra?

Sim, a tal ponto que Flammarion declarou que não se podia, então, cientificamente, depor a favor nem contra semelhante tese. Em consequência, essa indecisão forçada longe estava de esclarecer a questão da geração primitiva. O mistério permanecia, pois, tão profundo como ao tempo de Pitágoras. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

B. Existem seres vivos na Terra, eis o fato. De onde vêm eles?

Esse é, segundo Flammarion, o grande mistério. Além da exposição contida no livro de Gênesis, ele diz ter conhecido astrólogos que escreveram grandes calhamaços para demonstrar que esses seres nos chegaram de outros planetas, na asa de qualquer cometa aventuroso, ou grudados nalgum bojudo aerólito. Quanto aos cientistas propriamente ditos, a dúvida persistia. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

C. Se não existe ser orgânico algum sem filiação, quem formou o primeiro casal de cada espécie?

A Bíblia diz que foi Deus. Perfeitamente, mas como? Por uma simples maravilha verbal? Súbito efeito da vontade divina? Neste caso, de que forma? Os livros revelados nada têm de explícitos e podemos interpretá-los a favor da geração espontânea, em que pese aos senhores teólogos, tanto como em sentido contrário. Como se vê, trata-se de um enigma de difícil solução. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)


Texto para leitura


480. Na atualidade não se pode, cientificamente, depor a favor nem contra a geração espontânea. Essa indecisão forçada longe está de esclarecer a questão da geração primitiva. O mistério permanece tão profundo como ao tempo de Pitágoras. Existem seres vivos na Terra, eis o fato. De onde vêm eles? Conhecemos astrólogos (ainda os há) que escreveram grandes calhamaços para demonstrar que esses seres nos chegaram de outros planetas, na asa de qualquer cometa aventuroso, ou grudados nalgum bojudo aerólito. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

481. Conhecemos sonhadores que pretendem hajam os seres aflorado à superfície do orbe terrestre pela fecundação de eflúvios planetários e estelares. Isso, porém, é romantismo. De onde, pois, vêm os seres? Responder-nos-ão que sempre existiram? Essa maneira de esquivar-se à dificuldade teria contra si a agravante da falsidade, uma vez que as camadas geológicas nos apresentam, em fases regressivas, as épocas em que surgiram diferentes espécies. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

482. Se não existe ser orgânico algum sem filiação, quem formou o primeiro casal de cada espécie? A Bíblia responde que foi Deus. Perfeitamente, mas como? Por uma simples maravilha verbal? Mas, antes de tudo: – Deus fala? – objetam os gracejadores, lembrando-se de que o som não se propaga no vácuo... Súbito efeito da vontade divina? Neste caso, de que forma? Os livros revelados nada têm de explícitos e podemos interpretá-los a favor da geração espontânea (em que pese aos senhores teólogos), tanto como em sentido contrário:

“Deus diz: – Que a terra produza a erva tenra, contendo a semente e árvores que deem fruto, cada qual da sua espécie, e que encerrem consigo a sua semente, a fim de proliferar sobre a terra. E assim se fez. A terra, portanto, produziu a erva contendo a semente de sua espécie, bem assim as árvores, com as suas sementes peculiares à espécie. E Deus viu que isso era bom.

“E da noite da manhã surgiu o terceiro dia. Disse Deus, então: Que as águas produzam animais vivos que flutuem nelas, e aves que voem acima da terra e sob o firmamento do céu. E os abençoou, dizendo: Crescei e multiplicai, povoai as águas do mar e que as aves se multipliquem sobre a terra.

“E da noite e da manhã surgiu o quinto dia. Deus disse, então: Que a terra produza animais vivos, cada qual na sua espécie, os domésticos, os répteis e as feras bravias. E assim foi feito”[i](Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

483. Aí temos o que muito se assemelha à geração espontânea. De resto, os Santos Padres professaram essa doutrina. Humboldt achou muito curioso que Santo Agostinho, encarando o povoamento das ilhas, após o dilúvio, não se mostrasse muito longe de recorrer à hipótese de uma geração espontânea (Generatio aequivoca apontanea atst primaria). “Se os anjos ou os caçadores do continente – diz esse Pai da Igreja – não transportaram animais a essas ilhas afastadas, é força admitir que o solo os tenha engendrado; mas, neste caso, pergunta-se: – por que encerrar na Arca animais de toda espécie?” (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

484. Dois séculos antes do bispo de Hipona, vamos encontrar no compêndio de Trogue-Pompeia, já estabelecida a propósito da dissecação primitiva do mundo antigo, do planalto asiático, analogia com a geração espontânea ou, seja, uma conexidade semelhante à que se depara na teoria de Linneu, acerca do paraíso terreal, com as investigações do século 18 sobre a Atlântida fabulosa. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

485. Quanto ao mais, esses Mirabeaus da tribuna positivista encontram-se, fundamentalmente, em ignorância e indecisão absolutas, no que concerne à origem da vida. Em vão lançam sobre o mistério o véu do talvez; em vão se entretêm a imaginar mil metamorfoses. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

486. Quando olhamos para o fundo do vaso, percebemos que o caldo não é tão claro quanto o supõem. De tempos a tempos, sem maior alarde, eles deixam perceber confissões que nos permitimos aqui glosar para edificação do auditório. “Enigma insolúvel – diz B. Cotta – que não podemos deixar de atribuir à potência imperscrutável de um Criador, eis o que se nos afigura sempre a origem da matéria, bem como o nascimento dos seres orgânicos.” Eis uma confissão digna de um espiritualista. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

487. Büchner, por outro lado, diz: – “É preciso atribuir à geração espontânea um papel mais importante nos tempos primitivos em relação aos atuais, visto não se poder negar que ela tenha engendrado, então, organismos mais perfeitos do que hoje.” E acrescenta logo: “Verdade é que nos faltam provas e mesmo conjeturas plausíveis dos pormenores desses espécimes, o que estamos longe de negar.” E, voltando à ideia dominante, declara imediatamente que – “seja qual for a nossa ignorância, devemos dizer convictamente que a criação orgânica pode e deve ter ocorrido sem intervenção de qualquer força exterior”. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

488. Carl Vogt, a exemplo dos pré-citados, reconhece que as forças físico-químicas conhecidas não bastam, só por si, para explicar a origem dos organismos. Todo ser vivo, vegetal ou animal, tem sua origem essencial na célula orgânica, ou ovo. Antes de tudo, havemos de admitir que essa origem essencial foi criada, sem sabermos como. Só depois dessa premissa admitida é que começam as demonstrações físico-químicas. “Se admitirmos que isso tivesse sucedido uma única vez – diz o autor das Lições sobre o Homem – mediante ação simultânea de fatores diversos, que não conhecemos, é lícito concluir que houvesse podido formar-se uma célula orgânica a expensas dos elementos químicos, e torna-se evidente que a mais ligeira modificação devesse determinar imediata modificação no objeto produzido, isto é, na célula. Mas, como não podemos admitir que, sobre toda a superfície terrestre, as mesmas causas tenham atuado e ainda atuem nas mesmas condições e com a mesma energia, na criação da célula primitiva; e que, por outro lado, a criação orgânica haveria de estender-se por toda a Terra, conclui-se, necessariamente, que as primitivas células geradoras de organismos deviam ter aptidões de desenvolvimento diferentes.” (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

489. Wirchow não explica melhor a questão de origem. “Em certa fase de desenvolvimento da Terra – diz – sobrevieram condições anormais, sob as quais, entrando em novas combinações, os elementos recebiam o movimento vital, donde as condições ordinárias se tornaram vitais.” (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

490. Quanto a Charles Darwin, em vão temos rebuscado a sua opinião, mesmo quanto à origem das espécies. Contenta-se ele com o explicar a variabilidade possível dum certo número de tipos primitivos, e é uma nota no mínimo singular que, em obra tão volumosa e opulenta sobre a origem dos seres, não se trate absolutamente dessa origem!(Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

491. O problema é obscuro: a distância do nada a alguma coisa é maior que de alguma coisa a tudo. Seja qual for o sistema a que se filiem nossas crenças íntimas, espiritualistas ou materialistas, todos estamos assomados pelo inexplicável mistério da vida. Por que não reconhecer com franqueza a nossa absoluta ignorância neste particular? E, contudo, essa ignorância deveria moderar um pouco o ardor negativista dos ateus, levando-os a tratar o enigma com menos arrogância. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

492. É de convir que, quando nos assoberba uma tal incerteza, ninguém pode cantar vitória. Quiséssemos voltar à questão e fácil nos seria pôr todas as vantagens do nosso lado; poderíamos impor Deus aos adversários, sem que eles pudessem subtrair-se ao seu domínio. Não demonstrando a Ciência que as afinidades da matéria possam criar a vida, o papel do Criador, aqui, fica íntegro como nos tempos de Adão e até dos pré-adamitas. E ainda que o demonstrasse, a origem e o entretenimento da vida deixam ver claramente a existência de uma força criadora, ou seja, por outras palavras, um Deus oculto. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

493. Tal, porém, a força da nossa tática, que jamais queremos abusar de uma posição privilegiada e preferimos combater sempre em paridade de terreno e de armas. Contentamo-nos, assim, em insinuar apenas essa superioridade aos adversários, para sua edificação momentânea e baixando, logo a seguir, das alturas favoráveis ao triunfo, para voltar ao plano da organização da vida, sem nos prevalecermos dos argumentos oferecidos pelo problema dessa mesma vida. Ninguém dirá que, do ponto de vista singular da organização, a existência do Ser inteligente não esteja soberanamente demonstrada. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

494. Ainda mesmo que, em virtude de forças desconhecidas, pudesse a vida aflorar espontaneamente em dadas circunstâncias materiais, e ainda que os seres primários se tivessem formado de uma única célula primordial, gerada ao influxo de um conjunto de circunstâncias fortuitas; ainda assim, repetimos, a organização dos seres vivos seria uma prova irrefragável da soberania da força coordenada. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

495. Seria, sempre, em virtude de uma que tais leis superiores que a vida haveria de repontar e organizar-se, leis que não traduzem uma causa cega ou louca, mas causa que deve, no mínimo, saber o que faz. Assim, também, chegasse o homem a descobrir o nascimento espontâneo dos infusórios ou dos vermes intestinais, nem por isso teria criado esses ínfimos seres e sim, apenas, constatado que a Natureza opera à sua revelia, com poderes superiores aos seus e mediante processos que, a despeito de sua inteligência, lhe teriam custado séculos a descobrir (dado que lá chegasse). Mas, finalmente, nem por isso a causa da razão divina restaria mais esclarecida. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

496. Dado o mistério que envolve ainda a origem da vida na Terra, ninguém há com autoridade para declarar proscrita a ação do Criador. Suponha-se que os primeiros seres nascessem no estado de animalidade rudimentar e que as variedades sucessivas fossem a cepa das espécies hoje tão distintas; ou que os primeiros pais de cada família houvessem despertado à voz de comando de um grande mágico, e teremos que estas conjeturas não afetam mais a base da Teologia natural, do que se admitíssemos que essas espécies aqui aportassem trazidas de outros mundos nas asas de qualquer celeste mensageiro. Quanto à formação ou transformação das espécies, não está por sua vez melhor conhecida que a origem da vida, qual o confessa Ch. Lyell: “O que sabemos da Paleontologia é nada em comparação com o que resta a aprender.” (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)


 

[i] Gênesis.

 

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita