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Crônicas e Artigos
Ano 1 - N° 30 - 9 de Novembro de 2007

EUGÊNIA PICKINA 
eugeniamva@yahoo.com.br 
Londrina, Paraná (Brasil)
 

O espelho da ira
 

Em suma: a cólera não exclui certas qualidades do coração, mas impede que se faça muito bem, e pode levar a fazer muito mal. Isso deve ser suficiente para incitar os esforços por dominá-la. O espírita, aliás, é incitado por outro motivo: o de que ela é contrária à caridade e à humildade cristãs. (O Evangelho segundo o Espiritismo. Capítulo IX. Item 9 – Um Espírito Protetor)

No mínimo, é a ânsia de afirmação do ego um dos principais componentes da ira. A faísca da ira se dá diante da consciência do fracasso iminente, explica Mira Y López e nos dá um claro exemplo: “alguém nos atira um insulto absurdo e nós nos pomos a rir, porque sua falta de veracidade não nos ofende; mas, se alguém nos lança em rosto algo que é desagradável e total ou parcialmente verdadeiro, então será certa nossa ira. Por quê? Porque, no primeiro caso, nos sobram, e no segundo nos faltam meios seguros para anular os efeitos do insulto”. (1)

Ao menos teoricamente, nossa civilização é desfavorável aos estados iracundos e somos educados para reprimir suas manifestações diretas. O problema ganha profundidade caso reparemos na ira camuflada que permeia, sem rubor, nosso modo de vida social. Aqui, pois, interessa ponderar a respeito de dois disfarces usados por esse nosso adversário anímico, que precisam ser examinados para serem transformados: a ironia e a soberba.

Contudo, não faria sentido investigar a ironia de Sócrates, que é tecida do caráter purgador, à medida que leva o discípulo a confessar suas ignorâncias para libertar-se do orgulho de crer tudo saber e, desse modo, dar início ao caminho da construção das próprias idéias e convicções, segundo a proposta do “conhece-te a ti mesmo”. Assim, a ironia socrática é uma ironia “inocente”, como bem explicado por Hegel, pois não está contaminada pela presença da ira.

Ora, não é, portanto, a ironia socrática o alvo da análise, mas sim a ironia utilizada pelo comportamento ordinário, que traduz o sentido de zombaria, que gosta de destilar o veneno depreciativo para intoxicar a vida social.

Nesse encalço, entre ira e ironia há uma aliança inequívoca. Todo irônico é “um iracundo que não ousa manifestar abertamente seu descontentamento e recorre à máscara de um falso humorismo”. (2) O irônico, afetado pelo sadismo, busca no que odeia (e não no que estima) ridicularizá-lo por meio de comentários impiedosos ou jocosos. Por isso, para ele é fácil fazer uma crítica ferina ou construir uma piada injuriosa, uma vez que está sintonizado com o que carrega em si mesmo de ira e não de amor, pois, na verdade, vive roído pelo autodesprezo.

Não precisamos argumentar que o amor por si mesmo é necessário, além de ser indispensável ao amor do próximo. E o autodesprezo, resultante do íntimo doente ou maltratado, é exigente de uma atitude que, no lugar da autocondenação, oriente a autovalorização, já assinalada no preceito cristão. Como bem expressa Kierkegaard:

Se a pessoa não aprender com o cristianismo a amar a si mesma de maneira correta também não poderá amar aos seus semelhantes... Amar a si mesmo corretamente e aos semelhantes são conceitos absolutamente análogos e, no fundo, idênticos... Daí o mandamento: ‘Amarás a ti mesmo como ao teu próximo, quando o amas como a ti mesmo’”. (3)

Já a soberba exige ainda mais cautela. Há quem a confunda com o orgulho, mas, em realidade, diferencia-se dele.

“É, quase se pode dizer, sua ‘bastarda imitação exibicionista’. De fato, enquanto o verdadeiro orgulhoso – auto-satisfeito – procura dissimular este defeito, o soberbo cospe sobre quem o contempla: em voz grave, em seus gestos e ademanes altaneiros, em seu porte um tanto provocativo e em sua atitude depreciativa, manifesta-se esta constante agressão prévia ao ambiente. Quando se rende homenagem ao soberbo, não nos agradece a submissão, como faz o vaidoso, pois aquele está seguro de seu valor e de seu poder, enquanto este, em seu íntimo, sabe que é apenas capaz de representá-lo”. (4)

A presença da soberba em nós, uma astuta camuflagem da ira, precisa ser diagnosticada para ser compreendida e transformada, uma vez que apenas nos humanizamos nos superando, sem desconsiderar o fato de que o bom relacionamento depende do aprendizado do autogoverno. E governar-se pressupõe, necessariamente, o aprendizado contínuo sobre a própria ordem interna: seus obstáculos e seus recursos valiosos para que o indivíduo possa, ao se melhorar, desfrutar de uma vida com leveza e equilíbrio.

Rollo May afirma que o “ponto essencial da ética de Cristo foi haver deslocado a ênfase das regras exteriores dos dez mandamentos para as razões de ordem interior. ‘No coração estão as razões da vida’. Jesus afirmava não se tratar simplesmente do ‘não matarás’, e sim das atitudes interiores em relação ao próximo – ira, ressentimento, inveja, ‘luxúria do coração’ e assim por diante”. (5)

Como somos informados de que a vida neste espaço-tempo é episódica, não estamos aqui para intoxicarmos, com nossos reflexos coléricos, a vida uns dos outros. Ao contrário, estamos aqui para contribuirmos, com possibilidades mais afáveis, com uns e outros. E temos que arriscar a nos conhecermos para sentir que o fundo de nosso coração é doce e não mordaz ou corrosivo. Devemos nos dispor a permitir que o Self se expresse através do nosso ego (suscetível a irritações) para que, imunes ao comando ressentido da ira, vivamos agradecidos pela bênção que é estar vivo e comprometido com a meta de tentar, com empenho, viver (e conviver) amorosamente, segundo uma prática que se vale do uso criativo da inteligência.  

Bibliografia:

(1) MIRA Y LÓPEZ, Emilio. Quatro gigantes da alma. Tradução de Cláudio de Araújo Lima. 20 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000, p. 76.

(2) Op. cit., p. 88.

(3) BRETALL, Robert. A Kierkegaard Anthology. Princeton: Princeton University Press, 1946, p. 289.

(4) MIRA Y LÓPEZ, Emilio. Quatro gigantes da alma. Tradução de Cláudio de Araújo Lima. 20 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000, p. 91.

(5) MAY, Rollo. O homem à procura de si mesmo. 24 ed. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 183.
 


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 Revista Semanal de Divulgação Espírita